A legitimidade do ensino de evolução no currículo escolar brasileiro

  • William Rossani dos Santos Universidade Estadual de Campinas
  • Rebeca Chiacchio Azevedo Fernandes Universidade Federal de São Carlos
Palavras-chave: Ensino de Evolução, Teoria Sintética da Evolução, Currículo, Criacionismo

Resumo

A LEGITIMIDADE DO ENSINO DE EVOLUÇÃO NO CURRÍCULO ESCOLAR BRASILEIRO

 

 

  • INTRODUÇÃO 

 

Atualmente a Teoria Sintética da Evolução é entendida como o eixo unificador das Ciências Biológicas, uma vez que articula contribuições de diferentes campos das Ciências Naturais. Autores, como Mayr (2005), compreendem a importância crucial de tal conhecimento, principalmente por ter sido um dos constructos responsáveis para a legitimação da autonomia da Biologia enquanto Ciência. Por outro lado, seu valor tem sido constantemente contestado por grupos criacionistas que, além de se posicionarem publicamente contrários aos pressupostos científicos da Biologia, reivindicam a liberdade de ensino da criação judaico-cristã, tal como é narrado nas escrituras bíblicas, sob a alegação de que ambas as explicações sobre a origem e desenvolvimento da vida deveriam ser tratadas de maneira semelhante no currículo escolar.

Essa oposição da fé religiosa ao processo evolutivo se deriva de uma série de fatores históricos, filosóficos e ideológicos, que pode ser explicada primeiramente pela crença irrefutável em um criador que concebeu de forma fixa e imutável suas criaturas; pela descentralização antropocêntrica do homem em relação à natureza derivada dos pressupostos de descendência comum entre os seres vivos; pelo papel (secundário) atribuído ao acaso presente no mecanismo de seleção natural contrário a um processo teleológico; e, por fim, pela emergência de uma Ciência secular introduzida pelo pensamento darwinista que entrou em conflito direto com as concepções religiosas vigentes até 1859, ano de publicação da “Origem das Espécies”, por Charles Darwin.

Desde tal publicação, este embate no campo teológico-político tem sido bastante acirrado, principalmente em países como Estados Unidos, como foi o caso do Julgamento de Scopes na década de 1920 que tornou ilegal o ensino evolutivo, e, atualmente, no Brasil, tem ganhado cada vez mais força por integrantes da bancada evangélica no parlamento brasileiro que reivindicam a inserção do Criacionismo como “teoria” alternativa no ensino de ciências.

Diante de tais discussões, tivemos o intuito de compreender a legitimidade do ensino de evolução biológica enquanto um componente científico no currículo escolar em contraposição a este tópico que é orientado basilarmente por meio da ideologia religiosa, isto é, a narrativa da criação bíblica.

 

  • METODOLOGIA

 

A presente pesquisa consistiu em uma investigação de caráter documental que visou analisar algumas normativas curriculares nacionais sobre o tema. Foram selecionadas aquelas que inauguraram o estabelecimento dos conteúdos mínimos necessários para a formação comum do cidadão brasileiro, vindicados na última LDB (1996), a saber: os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais (1997), Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (1998), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (2017), além das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Ciências Biológicas (2001). Tais documentos foram localizados no sítio do Ministério da Educação (MEC).

A análise procurou contemplar o tratamento do tópico evolutivo como um componente curricular e a identificação das narrativas criacionistas como concepção alternativa em relação ao ensino da origem da vida em cada um desses documentos. 

Destacamos que tal estudo é um recorte de uma pesquisa mais ampla sobre a inventariação da produção do Ensino de Evolução Biológica no Brasil.

 

  • RESULTADOS E DISCUSSÕES

 

A literatura sob a temática “Evolução Biológica e Criacionismo” tem indicado que as questões religiosas são centrais no debate dos tópicos do processo de evolução no ensino de ciências. Em sua maioria, os trabalhos evidenciam que o Criacionismo é a concepção predominante entre estudantes e professores, o que indica a influência das crenças religiosas na aprendizagem dos conhecimentos biológicos (ALMEIDA, 2012). 

Alguns trabalhos acadêmicos de pós-graduação compreendem o Criacionismo como um movimento antievolucionista que se propõe a alterar o currículo de ciências e os materiais didáticos de Biologia relativos à teoria biológica da evolução em prol da narrativa bíblica (MOTA, 2014; SILVA, 2015; FARIAS, 2017; TORRESAN, 2018) 

Ao analisarmos os documentos oficiais no âmbito da educação, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais (1997), os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio - Parte III (1998), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) e a Base Nacional Comum Curricular (2017), evidenciamos que a Teoria Sintética da Evolução é encarada como uma teoria unificadora no âmbito científico, uma vez que dá unidade às diversas disciplinas e áreas que constituem as Ciências Biológicas.

O primeiro documento, por exemplo, aborda sinteticamente as ciências da vida e a teoria da evolução como eixo unificador; o segundo, por sua vez, reitera este entendimento ao afirmar que “focalizando-se a teoria sintética da evolução, é possível identificar a contribuição de diferentes campos do conhecimento para a sua elaboração, como, por exemplo, a Paleontologia, a Embriologia, a Genética e a Bioquímica” (BRASIL, 1998, p. 17).

As Orientações Curriculares (2006) igualmente reforçam a abrangência da teoria sintética da evolução quando cita:

 

Um tema de importância central no ensino de Biologia é a origem e evolução da vida. Conceitos relativos a esse assunto são tão importantes que devem compor não apenas um bloco de conteúdos tratados em algumas aulas, mas constituir uma linha orientadora das discussões de todos os outros temas [...] A presença do tema origem e evolução da vida ao longo de diferentes conteúdos não representa a diluição do tema evolução, mas sim a sua articulação com outros assuntos, como elemento central e unificador no estudo da Biologia (BRASIL, 2006, p. 22). 

 

Da mesma forma, a Base Nacional Comum Curricular (2017) preconiza que a teoria biológica da evolução possui um papel integrador no ensino de Biologia ao inserir as Unidades Temáticas “Vida e Evolução” no ensino fundamental e “Vida, Terra e Cosmos” no ensino médio, dando destaque à importância pelos estudantes da “compreensão dos processos evolutivos que geram a diversidade de formas de vida no planeta” (BRASIL, 2017, p. 326), a necessidade de comparação entre diferentes ideias evolucionistas desenvolvidas no decorrer da História e as competências  necessárias de se “aplicar os princípios da evolução biológica para analisar a história humana, considerando sua origem, diversificação, dispersão pelo planeta e diferentes formas de interação com a natureza, valorizando e respeitando a diversidade étnica e cultural humana” (BRASIL, 2017, p. 557).

Por fim, encontramos a integração dos conhecimentos evolutivos nos currículos dos cursos de Biologia no Brasil, que seguem as orientações das Diretrizes homologadas em 2001 e apresentam os conteúdos básicos da Biologia. De acordo com este documento, os conteúdos biológicos estão integrados em cinco eixos temáticos: 1) as interações biológicas, sob os níveis molecular, celular e evolutivo; 2) a diversidade biológica pautada por estudos morfológicos, fisiológicos e etológicos; 3) as relações ecológicas e a consciência ambiental; 4) os fundamentos das ciências exatas e da Terra, incluindo os processos geológicos e físico-químicos; 5) fundamentos filosóficos e sociais (BRASIL, 2001). O que este documento nos traz de relevante é a perspectiva evolutiva de maneira transversal em todas as disciplinas que constituem suas áreas de conhecimento e abrangência, precisamente pelos conteúdos programáticos do campo da Biologia serem inseparáveis das demais ciências naturais.

Ao buscarmos o tratamento do Criacionismo nestes documentos como uma forma alternativa de ensino sobre a origem e desenvolvimento da vida orgânica, percebemos que a Base Nacional Comum Curricular é o único documento que salienta de forma indireta sobre a possibilidade de se abordar “modelos, teorias e leis propostos em diferentes épocas e culturas para comparar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução da Vida, da Terra e do Universo com as teorias científicas aceitas atualmente” (BRASIL, 2017, p. 557).

A conclusão que se chega é que as explicações religiosas são abordadas muito mais sob um viés de aquisição dos conhecimentos culturais pertencentes a um determinado grupo do que sob uma perspectiva diretamente ligada à apropriação de um repertório explicativo dos fenômenos naturais. Neste sentido, vemos que a ênfase na perspectiva biológica reforça a concepção da Ciência como fundamento para os conteúdos escolares, e valida a Teoria Sintética da Evolução como um conhecimento biológico legítimo de ser ensinado.

 

CONCLUSÃO

O debate sobre a seleção dos conteúdos no interior do currículo escolar sempre foi acalorado, principalmente pelo fato deste ser um território marcado por disputas políticas e ideológicas de diferentes grupos de interesses (SILVA, 2010). Ao considerarmos os argumentos em torno da legitimidade destes conteúdos no Brasil, em especial no ensino de ciências, é possível notarmos duas vertentes que têm se confrontado historicamente: de um lado, os adeptos da perspectiva científica e laica, de outro, religiosos, em sua maioria, de vertente cristã.

No ensino de evolução, essa disputa é ainda mais acirrada entre aqueles que credibilizam a evolução como um eixo unificador das ciências biológicas e entre os antievolucionistas que negam os fundamentos evolutivos por interesses particulares e contravertidos: os criacionistas.

Ao analisarmos os grandes documentos que orientam os currículos nacionais desde a segunda metade da década de 1990, notamos que a tendência predominante tem sido a defesa da perspectiva científica em detrimento da inclusão ideológica dos grupos religiosos que reivindicam espaço para disseminação de suas crenças pessoais.

Com efeito, grande parte das sociedades científicas têm contraposto o argumento da inclusão da narrativa judaico-cristã da criação no currículo escolar a partir da alegação de violação da liberdade de crença, simplesmente pelo fato de a Teoria Biológica da Evolução não se tratar de uma crença, mas de uma elaboração teórica amplamente discutida e examinada por cientistas de diferentes áreas, ancorada em evidências e fatos científicos (SBENBio, ABRAPEC, SBPC, 2014; CFBio, 2015).

Neste sentido, entendemos que há um amplo entendimento pelos referenciais educacionais e pelas associações científicas sobre o valor do ensino evolutivo no ensino de ciências para o entendimento do surgimento, desenvolvimento e transformação da vida no planeta, e que este valor legitima o ensino de evolução como o componente curricular válido para toda a educação básica.

 

  • REFERÊNCIAS 

 

ALMEIDA, D. F.. Concepções de alunos do ensino médio sobre a origem das espécies. Ciência & Educação, Bauru, v. 18, n. 1, p. 143-154, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-73132012000100009&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 09 set. 2020.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO DE BIOLOGIA. Carta aberta da SBENBio e ABRAPEC contra a PL do pastor Feliciano. Rio de Janeiro, 24 nov. 2014. Disponível em: https://sbenbio.org.br/geral/carta-aberta-da-sbenbio-e-abrapec-contra-a-pl-do-pastor-feliciano/.  Acesso em: 09 set. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – Área de Ciências da Natureza. MEC. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 09 set. 2020.

BRASIL. Resolução CNE/CES nº 1301/2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Ciências Biológicas, 2001. 07 p. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES1301.pdf. Acesso em: 09 set. 2020.

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_02_internet.pdf. Acesso em: 09 set. 2020.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais. Brasília: MEC, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro04.pdf.. Acesso em: 09 set. 2020.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio Parte III- Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencian.pdf.  Acesso em: 09 set. 2020.

CONSELHO FEDERAL DE BIOLOGIA. CFBio repudia projeto que torna obrigatório o ensino de Criacionismo nas escolas. 04 mar. 2015. Disponível em: https://cfbio.gov.br/2015/03/04/cfbio-repudia-projeto-que-torna-obrigatorio-o-ensino-do-criacionismo-nas-escolas/. Acesso em: 09 set. 2020.

FARIAS, M. A. F. M. O ensino de evolução por docentes de escolas com diferentes contextos de confessionalidade. 2017. 223 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, 2017. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/81/81133/tde-10072018-153953/pt-br.php#referencias. Acesso em: 09 set. 2020.

MAYR, E. Biologia, Ciência única. Companhia das Letras: São Paulo, 2005. 

MOTA, H. S. Evolução Biológica e Religião: atitudes de jovens estudantes brasileiros. 275p. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,2013. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-28012014-143821/pt-br.php. Acesso em: 09 set. 2020.

SILVA, M. S. Professores de Biologia e Ensino de Evolução: Uma perspectiva comparativa em países com contraste de relação entre Estado e Igreja na América Latina. 2015. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-A3HFBJ. Acesso em: 09 set.  2020.

SILVA, T. T.. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de currículo. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.

TORRESAN, C. Mitos sobre a origem do ser humano em livros didáticos de História: a escola e a transmissão do conhecimento. 2018. 117 f. Dissertação (mestrado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2018. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7327. Acesso em: 09 set. 2020.

 

Publicado
14-12-2020
Seção
Políticas Educacionais e Currículos de Ciências