AS GARRAS VISÍVEIS E EDUCATIVAS DO NEOLIBERALISMO

  • Aryel Lamed David Cacau Universidade Federal da Fronteira Sul
  • Bruno Antonio Picoli

Resumo

Este resumo expandido trata de um capítulo de dissertação em desenvolvimento, escrito através de metodologia qualitativa. Utilizamos a análise teórica e bibliográfica e temos como intenção, identificar fragmentos do comportamento totalizante do neoliberalismo, seu interesse na educação e sua capacidade educativa. Através da teoria pós-crítica, intencionamos tecer primeiramente um paralelo entre as noções de  liberalismo clássico e neoliberalismo, destacando o enfraquecimento da esfera pública neste, para então compreender seus aspectos homogeneizadores. Assim faz-se possível explorar a dinâmica do educativo do neoliberalismo, entendendo o educativo enquanto artifício de transformação de subjetividades, ao transmitir valores específicos , sejam estes intencionais, ou não. 

"O mito da economia autorregulada está, hoje, praticamente extinto" (Stiglitz, 2000, apud Souza, 2020, p. 104). Há ainda quem se oponha a esta máxima ao acreditar na crença que o capital gesta a si mesmo, depende da própria existência e assim, espalha riqueza integralmente. Ricardo Timm de Souza em seu escrito "A idolatria material e a verdadeira face de Mamon" (2020) aprofunda-se nos porquês da insistência da concepção do mercado independente, autorregulado "como tal ideia ou ideologia pode manter, ainda hoje, uma pretensão de narrativa coerente?"(Souza, 2020, p. 104). Não teriam as crises cíclicas do capitalismo sido o bastante para comprovar o contrário?

Não há explicação plausível, uma vez que, para o autor, tratamos de uma "[...] fábula que não resiste nem a fatos nem a argumentos" (Souza, 2020, p.104), a ideia da autorregulação do capitalismo ainda têm poder, mesmo com os esforços de cientistas sociais e economistas que falam o contrário. A justificativa parece estar na própria concepção do neoliberalismo: a mão invisível é intocável, incontornável e, como um ser místico de poder próprio e intransferível, exclui a possibilidade de racionalidade argumentativa e adiciona a si uma espécie de dogma religioso. Desta forma, o capitalismo tem explorado uma totalidade que inclui tanto o espírito quanto o material (Souza, 2020, p. 105), e o faz de forma lógica desde o início da sua história até o que hoje chamamos de neoliberalismo. 

Ao diferenciar o liberalismo clássico do neoliberalismo americano, Foucault destacou a ambiguidade do primeiro em suas relações do mercado com o poder político: 

 

É necessário [...] um Estado que seja capaz de se manter acima dos diferentes grupos concorrenciais e das diferentes empresas em concorrência com as outras. É necessário que esse quadro político e moral assegure 'uma comunidade não desagregada' e, enfim, garanta uma cooperação entre os homens 'naturalmente enraizados e socialmente integrados'. (Foucault, 2008, p. 333). 



Aqui a esfera pública (da ação, da política) e privada (do trabalho, da casa, da sobrevivência) parecem dar indícios de um atravessamento de fronteiras.  Já o neoliberalismo americano transpassa essa fronteira definitivamente: 

 

No neoliberalismo americano, trata-se de fato e sempre de generalizar a forma econômica do mercado. Trata-se de generalizá-la em todo o corpo social, e generalizá-la até mesmo em todo o sistema social que, de ordinário, não passa ou não é sancionado por trocas monetárias. Essa generalização de certo modo absoluta, essa generalização ilimitada da forma do mercado acarreta certo número de consequências ou comporta certo número de aspectos. (Foucault, 2008, 333-334)



Mesmo o que inicialmente não passaria pelo alcance das relações comerciais, tendo como exemplo propósitos de vida - a intenção da acumulação de renda, o enriquecimento - e até mesmo os vínculos familiares.  Foucault exemplifica relações de pais e filhos neste sistema: criar a prole é um investimento para o futuro, algo que gera capital humano e benefício monetário aos pais (1979, p. 334). A lógica do capital se incorpora nas relações humanas de tal forma que a própria esfera pública se enfraquece:

 

Aqui [no neoliberalismo americano], transforma-se o laissez-faire em não deixar o governo fazer, em nome de uma lei de mercado que permitirá aferir e avaliar cada uma de suas atividades. O laissez-faire se vira assim no sentido oposto, e o mercado já não é um princípio de  autolimitação do governo, é um princípio que é virado contra ele. É uma espécie de tribunal econômico permanente em face do governo [...] que pretende aferir a ação do governo em termos estritamente de economia e de mercado. (Foucault, 2008, p. 339)

 

O Estado torna-se, então, uma espécie de subordinado do neoliberalismo, em função de benefícios para o sistema econômico. O século XX, mais precisamente os anos 70, seriam marcadores determinantes da ascensão do neoliberalismo, uma vez que:

 

cresce a possibilidade de inteligibilidade histórica e cultural da verdadeira relevância autonomizadora do (agora já) tardo-capitalismo - novos modelos de organização do trabalho [...] isto significa que o desenvolvimento do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudança na organização da própria sociedade. Seguindo esse raciocínio, a sociedade humana tornara-se um acessório do sistema econômico (SOUZA, 2020, p. 118)

 

Assim, não há mão invisível que passe despercebida. Os impactos sociais do neoliberalismo na vida humana fazem revelar suas garras: são tão visíveis que tomam conta de todas as relações. Esta totalidade do espírito, da economia, do material, das relações familiares, amorosas são contrárias aos impulsos que tornam o percurso terreno dos humanos incapazes de preservação e manutenção, sejam estas físicas ou mentais. Como no exemplo dado por Chistian Dunker em “O neoliberalismo e seus normalopatas” (2016) ao entender a depressão e a anorexia enquanto sintomáticas de um sistema que é responsável por doenças em razão da própria produção. A primeira “ representa o colapso na produção, a segunda no consumo” (Dunker, 2016). Desta forma, a vida no capitalismo nos adoece, frustra, tira da humanidade sua própria vitalidade e além disso, usurpa um dos elementos que a torna possível: o tempo. 

 

E totalizando não apenas o tempo mas também o espaço no qual o aprendizado ocorria. O neoliberalismo foi capaz de fazer isso, já que criou o sujeito, o "empreendedor de si", que é a unidade motriz por trás da produção econômica dentro desse tipo de sociedade. (Kaščák e Pupala, 2011, p. 151, tradução própria)

 

A escola é um campo importante para o neoliberalismo, uma vez que é o lugar em que aproximamos as crianças e adolescentes da vida para além do núcleo familiar, apresentamos a eles o mundo e suas complexidades. Há aí uma espécie de “galinha dos ovos de ouro”, e o neoliberalismo também agarra o âmbito escolar: “O neoliberalismo olha para a educação a partir da sua concepção de sociedade baseada em livre mercado cuja própria lógica produz o avanço social com qualidade, depurando a ineficiência através da concorrência”. (Freitas, 2018, p. 31). O estudo PISA (Program for International Student Assessment) é uma ferramenta importante para a relação do neoliberalismo com a educação, pois tem como objetivo avaliar escolas, sistemas escolares, estudantes, a partir de testes realizados com alunos de 15 anos nas disciplinas de leitura, ciência e matemática, obtendo como fim resultados comparativos. O teste é impulsionado por agências internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial e interpretado como referência de política educacional internacionalmente (Freitas, 2018, p. 82). Considerar estas disciplinas como parâmetros basilares de educação carrega uma mensagem não dita dentro da ausência de história, geografia, sociologia, filosofia e confirmam uma espécie de indiferença em detrimento aos chamados “domínios inovadores”, como menciona a página do Governo Federal em relação ao sistema de avaliação, definindo-os como: “Resolução de Problemas, Letramento Financeiro e Competência Global.” (Brasil, 2020). Assim, dentro desta lógica empresarial, o PISA  “sofreu o destino de vários projetos de reforma: isto é, serem colocados à serviço de uma variedade de interesses dos quais - dependendo da perspectiva - lêem nos resultados dos estudos o que é oportuno para eles.” (Pongratz, 2006, p. 473, tradução própria). Este sistema de avaliação não é neutro dentro da sua objetividade científica, “estabelece seus próprios padrões de normalidade” (Pongratz, 2006, p. 473, tradução própria). E adiciona: “Todas as iniciativas de reforma resultantes permanecem dentro de uma estratégia de coordenação desse processo de normalização baseado em poder, através do qual a sociedade disciplinar estende sua influência aos cantos mais distantes do sistema educacional” (Pongratz, 2006, p. 473, tradução própria). A motivação das avaliações realizadas pelo sistema PISA, apoiadas em ideais neoliberais, demonstram uma “forma avançada da governamentalidade neoliberal” (Pongratz, 2006, p. 479), com um foco na gestão escolar de qualidade: “motor propulsor da transformação do ensino e da escola, é inteiramente fiel às suas reivindicações totalitárias: enquanto exige procedimentos incessantes de individualização (de organizações assim como de indivíduos)” (Pongratz, 2006, p. 479). E é nesta bandeja de interesses dentro da educação que o neoliberalismo crava suas garras. 

A metanarrativa neoliberal representa assim uma totalidade de uma variedade de práticas discursivas e não discursivas, que muitas vezes operam de forma díspar, subliminar e diversa”   (Kaščák e Pupala, 2011. p. 149-150, tradução própria). São homogeneizadores pois criam mosaicos de pensamento fundamentados por valores mobilizados para dar criar uma verdade única e dominante: “[o neoliberalismo] é uma forma de imperialismo porque busca afirmar sua própria verdade como a única verdade, não apenas na esfera econômica, mas em todas as esferas da vida, individual e social” (Guilherme; Picoli, 2019, p. 3, tradução própria). Essas maneiras de subjetivação, ao transformarem realidades a partir de um amálgama de valores conectados com um propósito, também educam.

 Em “Investigar la educación desde la Educacion”, Sebastian Plá descreve o educativo: “Dado que o educativo é a intenção de transmitir um valor, não há nada que tenha dito valor em si, pois é criado socialmente e, portanto, sofre modificações permanentes” (Plá, 2022, p. 35, tradução própria). O educativo não é necessariamente positivo ou mesmo negativo, ele está presente na transmissão de valores que interferem nas subjetividades dos sujeitos que são envolvidos por ele. Ideias irredutíveis, totalizantes que têm como objetivo homogeneizar até mesmo o que parecia improvável, têm um potencial educativo. O teor religioso com que o neoliberalismo lida com o lucro, essa mão visível de um ideal que ultrapassa o econômico e torna-se uma “forma de vida” (Dunker, 2016), colocando suas garras em todos os âmbitos da vida humana, inclusive na educação. Há ainda o fator da balança. Dunker (2016) dá como exemplo uma relação empresarial, mas esta comparação é possível também no âmbito educacional: deve-se ter cada vez mais êxito, e menos falhas, mais aprovações para mais verba e assim, menos ineficiência e maiores índices; mais otimização do tempo em sala, para de forma máxima atender às exigências das habilidades e competências, reduzindo assim, a possibilidade de um ensino-aprendizagem destoante da base curricular. E nesta garra neoliberal, também está o educativo que altera subjetividades, transforma através de sua fixação de valores em todos os âmbitos possíveis.

Além da unha comprida de alguns animais, a garra é por vezes, dentro de seu sentido figurativo, a força de vontade, poder intransigente, controle, domínio, (Houaiss, 2009, p. 956). E mesmo em sentidos figurativos há a possibilidade de conexão entre o pensamento neoliberal,  longe da metáfora. Se tratamos da vontade incessante de algo, não necessariamente positivo ou negativo, podemos  ceder os devidos créditos ao pensamento neoliberal. Uma garra educadora neoliberal mostra aos estudantes na escola que existem áreas de conhecimento que “não servem”. Esta mesma garra é oposta a história, sociologia, filosofia, geografia no currículo escolar, pregando o utilitarismo, atravessando o corpo escolar ao deixar exposta uma necessidade do trabalho constante, da busca incessante por produção. A outra garra atravessa o próprio currículo e suas motivações, vai das reformas educacionais e suas políticas até o chão da escola. E é definitivamente totalizante.

 

Palavras-chave: Neoliberalismo. Educativo. Educação. Fundamentos da Educação. 

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). 2020. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/pisa. 

DUNKER, Christian. O neoliberalismo e seus normalopatas. 2016. Disponível em:https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/03/o-neoliberalismo-e-seus-normalopatas/. Acesso em: 03 nov. 2016.

 

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

FREITAS, Luiz Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

 

GUILHERME, Alex; PICOLI, Bruno Antonio. Neoliberalism and Education in the Global South: A New Form of Imperialism. In: NESS, Immanuel; COPE, Zak. The Palgrave Encyclopedia of Imperialism and Anti-Imperialism. Londres: Palgrave Macmillan, Cham, 2019. p. 1-13.

HOUAISS, A. e VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 

 

KAŠČÁK, Ondrej; PUPALA, Branislav. Governmentality – Neoliberalism – Education: the Risk Perspective. Pedagogický časopis, v. 2, n. 2, p. 145-160, 2011.

 

PLÁ, Sebastían. Investigar la educación desde la educación. Madri: Morata; Cidade do México: UNAM, 2022.

 

PONGRATZ, L.A. (2006). Voluntary Self‐Control: Education reform as a governmental strategy. Educational Philosophy and Theory, 38(4), 471-482. doi: https://doi. org/10.1111/j.1469-5812.2006.00205.x

 

SOUZA, Ricardo Timm de. Idolatria material e a verdadeira face de Mamon. In Crítica da razão idolátrica tentação de Thanatos, necroética e sobrevivência. Porto Alegre Zouk, 2020. p. 103-125

Publicado
03-10-2024
Seção
Fundamentos da Educação