PROCEDIMENTOS DE SOLUÇÃO AO PROBLEMA DA SITUAÇÃO DESENCADEADORA DE APRENDIZAGEM NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Resumo
A presente investigação faz parte de um Projeto de Pesquisa mais amplo, de um Grupo de Pesquisa do Sul de Santa Catarina. Trata-se de uma pesquisa de Doutorado em andamento. Delimitamos como objeto geral de investigação a Atividade Pedagógica, que abarca tanto a atividade de ensino realizada pelo professor quanto a de aprendizagem, realizada por crianças e adolescentes no âmbito das atividades do jogo e de estudo. Debruçamo-nos em investigar a formação continuada de professores, com ênfase no modo de organização do ensino de matemática. Consideramos este um espaço profícuo que possibilita aos professores refletir sobre suas ações de ensino, ao atuar como organizadores da Atividade Pedagógica. Iniciamos o texto com uma cena desencadeadora da Atividade Pedagógica (Quadro 1):
Quadro 1 - Cena de um processo formativo
Fonte: Elaboração nossa, 2024.
A cena expõe a experiência vivenciada por um coletivo de professores, que colaborou com a presente pesquisa, no contexto de um espaço formativo organizado de forma intencional, em caráter investigativo. Nossa proposição de formação está vinculada a um projeto coletivo mais amplo que faz parte do Grupo de Pesquisa Teoria do Ensino Desenvolvimental na Educação Matemática (TedMat/UNISUL), que, por sua vez, faz parte de uma Rede Nacional de Grupos de Pesquisa (GEPAPe/USP).
O processo formativo foi conduzido com foco na aprendizagem dos conhecimentos matemáticos em nível científico, no desenvolvimento do pensamento teórico e da personalidade coletivista. Com o propósito de criar condições para o desenvolvimento do professor, constituímos um coletivo com finalidade à aprendizagem da docência, por meio de um experimento formativo desenvolvido ao longo de três semestres letivos (2023.1, 2023.2 e 2024.1). Delimitamos como recorte oito encontros realizados no primeiro semestre (2023.1), no Campus Tubarão/SC da Universidade do Sul de Santa Catarina.
No recorte temporal realizado para o presente estudo (2023.1), o coletivo de formação contou com dezesseis participantes, entre pesquisadores, coordenadores e professores da Educação Básica de escolas localizadas na região Sul do estado de Santa Catarina, Brasil. Colaboraram com a realização da pesquisa onze professores da Educação Básica que ensinam Matemática, licenciados em Pedagogia ou Matemática, que integraram o coletivo em 2023.1.
Organizamos o processo formativo com base na Teoria Histórico-Cultural e em dois de seus desdobramentos: a Teoria do Ensino Desenvolvimental e a Atividade Orientadora de Ensino. Assumimos os pressupostos teórico-metodológicos da Teoria Histórico-Cultural, desenvolvida por Lev Semionovitch Vygotsky na União Soviética, como expressão do método Materialista Histórico-Dialético. Consideramos que seus fundamentos teóricos nos possibilitam conhecer os processos de desenvolvimento do psiquismo humano e seus fundamentos metodológicos permitem captar, descrever, explicar e analisar a natureza histórico-social do fenômeno em sua totalidade (Cedro; Nascimento, 2017).
Essa concepção alicerçou a Teoria do Ensino Desenvolvimental, formulada na Rússia por Daniil Borisovich Elkonin, Vasily Vasilyevich Davýdov e seus colaboradores. Trata-se de uma teoria que propõe o desenvolvimento do pensamento teórico contemporâneo. De acordo com Davídov (1988), a formação do conhecimento e do pensamento humano pode ocorrer de duas formas: por meio da lógica formal tradicional como método do pensamento empírico (aspecto imediato, direto e externo) ou pela lógica dialética como método do pensamento teórico (aspecto mediatizado, interno, ligado à essência do objeto).
No século passado, Kopnin (1972, p. 82), fundamentado em Narski, já afirmava que se orientar “[...] pela lógica formal tradicional implica em fazer a ciência e o ensino regredir em aproximadamente um século”. Essa lógica mostra-se insuficiente para as demandas de pensamento requeridas pela escola contemporânea (Davídov, 1988).
Com vistas à superação dos processos de formação do pensamento empírico assumimos a lógica dialética, tanto no processo investigativo quanto formativo, por ser “[...] um método (modo) de análise concreta do objeto real, dos fatos reais” (Kopnin, 1978, p. 83). Esse método do pensamento teórico-científico se propõe “[...] a descobrir as leis da gênese das teorias científicas, as vias do seu desenvolvimento” (Kopnin, 1978, p. 87). A lógica dialética, que estuda as leis do pensamento, cria e aperfeiçoa um modo para a formação de um pensamento específico, o teórico.
Pensar teoricamente requer que os estudantes considerem os objetos e fenômenos em um sistema que contemple as relações dentro de uma totalidade. Em outras palavras, para sua efetivação, é fundamental que se compreenda a relação nuclear do conteúdo do conceito, a fim de desvelar sua essência, sua gênese e transformação histórica como expressão do seu princípio universal. Esse processo ocorre no movimento que transita entre manifestações de ordem geral, particular e singular, bem como o estudante realiza o procedimento de redução do concreto ao abstrato e ascensão do abstrato ao concreto (Davýdov, 1982). Na busca por potencializar o desenvolvimento do pensamento teórico, uma possibilidade é provocar nos estudantes, em idade escolar, a necessidade da Atividade de Estudo.
Nas pesquisas realizadas no contexto russo a Atividade de Estudo é uma teoria central. Destacamos o trabalho desenvolvido por Davídov e colaboradores, com base nos fundamentos da Psicologia soviética elaborados por Vigotski, Rubinstein, Leontiev, Galperin, Talizina, entre outros. A Atividade de Estudo é a atividade principal na idade escolar inicial que contribui com o desenvolvimento do pensamento criador e autônomo dos estudantes.
O precursor da Atividade Orientadora de Ensino é o pesquisador brasileiro Manoel Oriosvaldo de Moura (Universidade de São Paulo - USP). Essa teoria está em processo de consolidação por pesquisadores de diferentes grupos de pesquisa que compõem o GEPAPe em Rede. Assumimos seus princípios teóricos da Atividade Orientadora de Ensino para orientar nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão. A Atividade Orientadora de Ensino é uma produção brasileira alicerçada nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade que se legitimou como Teoria da Atividade Pedagógica, de modo a contribuir com a organização do ensino com a finalidade de promover o desenvolvimento humano em suas máximas potencialidades (Moura; Araujo; Serrão, 2018).
No contexto de desenvolvimento da Atividade Pedagógica, reconhecemos que o professor tem o ensino de conceitos como objeto principal. Esse profissional desempenha papel fundamental ao criar as condições pedagógicas que estimulam os estudantes a se colocarem em atividade de estudo. A intencionalidade de potencializar a apropriação do conhecimento aos estudantes possibilita ao professor criar e/ou desenvolver Situações Desencadeadoras de Aprendizagem.
Como parte da Atividade Orientadora de Ensino, a Situação Desencadeadora de Aprendizagem “[...] visa colocar a criança em tensão criativa, à semelhança daqueles que a vivenciaram, ao resolver seus problemas autênticos, gerados pelas necessidades de ordem prática ou subjetiva” (Moura; Araujo; Serrão, 2018, p. 422). Ela contempla a gênese do conceito e a abordagem de um problema que mobilize os sujeitos com base em uma necessidade vivenciada pela humanidade. Além disso, a situação deve ser concebida como um problema coletivo, que permita aos estudantes levantarem e testarem hipóteses, com a intenção de desenvolver uma síntese coletiva em resposta ao problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem.
Consideramos que uma das possibilidades para orientar o processo de busca pela solução do problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem é por meio do desenvolvimento das ações de estudo davidovianas. Em nosso coletivo, concebemos as ações davidovianas na relação com a Atividade Orientadora de Ensino, as quais consistem em: 1)transformação dos dados do problema desencadeador de aprendizagem, com a finalidade de revelar seu procedimento geral de solução; 2)modelação da relação nuclear do procedimento geral de solução nas formas objetal, gráfica e literal; 3)transformação do modelo da relação nuclear para o estudo de propriedades matemáticas; 4)resposta ao problema desencadeador de aprendizagem e resolução de um sistema de tarefas particulares que podem ser resolvidas por um procedimento geral de solução revelado na primeira ação, modelado na segunda e transformado na terceira ação de estudo. Operacionalizamos as quatro ações de estudo no processo formativo de professores com base na articulação da Teoria do Ensino Desenvolvimental com a Atividade Orientadora de Ensino. Nossa finalidade consistiu em elaborar um modo geral de organização do ensino de matemática com vistas à apropriação do conhecimento em nível teórico, pelos professores em formação e seus estudantes.
Os professores em formação percorreram um movimento, desenvolvido por meio de ações formativas, que potencializou o processo de significação e ressignificação do exercício da docência na atividade pedagógica. Conduzimos o percurso por meio das seguintes ações formativas: 1) estudo; 2) planejamento; 3) desenvolvimento; 4) compartilhamento.
Os professores realizaram um estudo das bases teórico-metodológicas que orientaram o processo de formação. Esse estudo possibilitou a elaboração de um modo geral de organização do ensino, que foi operacionalizado por meio do planejamento de Situações Desencadeadoras de Aprendizagem. Os professores conduziram o desenvolvimento das situações nas escolas com seus estudantes da Educação Básica. Posteriormente, compartilharam com o coletivo as experiências de docência. A ação de avaliação esteve presente durante todo o processo formativo. É importante ressaltar que o desenvolvimento dessas ações não ocorreu de forma linear do ponto de vista cronológico.
Sem desconsiderar a totalidade do processo, por meio da realização das ações formativas extraímos os dados de análise da presente investigação, cujo objetivo consiste em investigar os procedimentos de solução de problemas revelados por professores e estudantes da Educação Básica ao desenvolverem uma Situação Desencadeadora de Aprendizagem.
A necessidade do coletivo de professores, naquele momento, era superar práticas de organização do ensino dos processos de interpretação e resolução de problemas que limitam a apropriação dos conhecimentos em nível empírico. Mas como conduzir o procedimento teórico de solução do problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem, de modo a contribuir para potencializar as compreensões dos sujeitos envolvidos e impulsionar a formação do pensamento em nível teórico? Tal inquietação vai ao encontro do problema de pesquisa: quais procedimentos de solução de problemas são revelados por professores e estudantes da Educação Básica ao desenvolverem uma Situação Desencadeadora de Aprendizagem? A hipótese de tese é que processos de busca por respostas a um problema geram procedimentos particulares de solução. Os procedimentos gerais de solução são revelados com base em reflexões sobre a interconexão dos elementos essenciais que constituem o problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem.
Na tentativa de comprovar a tese, na presente investigação determinamos como unidade de análise o movimento entre geral e particular no processo de busca por solução para o problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem. Ao longo do processo de análise abstraímos um isolado. Dentre os três semestres que constituíram o processo formativo, debruçamo-nos nas ações formativas realizadas do 6º ao 12º encontro. Após o estudo dos fundamentos e desdobramentos da Teoria Histórico-Cultural, os professores iniciaram as ações formativas referentes à Situação Desencadeadora de Aprendizagem Verdim e seus amigos. Os dados analisados foram expostos por meio de episódios formativos.
No Episódio 1, extraído ao longo do desenvolvimento da ação formativa de planejamento, evidencia o movimento realizado pelos professores durante a sistematização do procedimento de solução da Situação Desencadeadora de Aprendizagem, a qual foi realizada inicialmente na forma coletiva e posteriormente em grupos.
No Episódio 2 relatamos o processo de busca do professor Thales e seus estudantes pela resposta ao problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem, de modo a explicitar um procedimento particular de solução. O professor Thales desenvolveu a situação com aproximadamente doze estudante do 6º ano do Ensino Fundamental II, de uma escola da rede estadual de ensino de Santa Catarina, no município de Pescaria Brava/SC. As cenas evidenciaram que o professor e seus estudantes resolveram o problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem semelhante ao modo de organização de ensino predominantemente desenvolvido na educação escolar brasileira.
No Episódio 3 apresentamos uma das possibilidades de superação do modo de organização predominantemente desenvolvido na educação escolar brasileira por meio do desenvolvimento realizado pela professora Laura e dez estudantes do 3º, 4º e 5º ano do Ensino Fundamental I (turma multisseriada), de uma escola da rede municipal de Garopaba/SC. Eles consideraram a interconexão dos elementos essenciais que constituem o problema como fio condutor do procedimento de solução em sua forma geral.
Com a presente pesquisa buscamos explicitar as limitações do modo de organização do ensino predominantemente desenvolvido na educação escolar brasileira e algumas possibilidades de superação. Na primeira experiência de docência no contexto do coletivo de formação, a maioria dos professores seguiu o movimento do conhecimento semelhante ao apresentado nos livros didáticos de matemática do Brasil e revelou o procedimento de solução da Situação Desencadeadora de Aprendizagem caraterizado pelo tipo particular.
Apenas uma das colaboradoras da pesquisa desenvolveu a Situação Desencadeadora de Aprendizagem de modo a potencializar as compreensões dos estudantes envolvidos, pautadas em alguns elementos que apontam para a formação do pensamento em nível teórico contemporâneo. Quem é essa professora? Aquela que se formou no ano de 2010, mas que estava no início do exercício da docência, em seu primeiro ano de atuação nos Anos Iniciais. Não tinha os vícios da cultura que predomina na educação escolar brasileira, inclusive nos livros didáticos e seguiu a lógica que o coletivo planejou, ou seja, seguiu a busca pelo procedimento geral de solução ao problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem e indicou possibilidades de superação do modo de organização predominantemente desenvolvido na educação escolar brasileira.
Os professores do coletivo expressaram que o modo como a professora Laura conduziu o desenvolvimento da Situação Desencadeadora de Aprendizagem era semelhante à forma como eles desejavam e desejam orientar seus estudantes. Portanto, constatamos a existência de dois tipos distintos de procedimentos de solução ao problema da Situação Desencadeadora de Aprendizagem: um em âmbito particular (professor Thales e estudantes concentraram-se na busca pela resposta ao problema) e outro de abrangência geral (estudantes orientados pela professora Laura deram enfoque ao procedimento geral de solução).
O caminho trilhado pelo coletivo indica um movimento de transformação nos professores. Com base na análise dos dados, os episódios extraídos expressam o movimento de idas e vindas percorrido pelos professores na desconstrução do modo como ensinavam matemática e na busca por possibilidades de superação, mediante a apropriação do conhecimento.
Palavras-chave: modo de organização do ensino de matemática; Teoria do Ensino Desenvolvimental; Atividade Orientadora de Ensino; movimento entre geral e particular.
REFERÊNCIAS
CEDRO, W. L.; NASCIMENTO, C. P. Dos métodos e das metodologias em pesquisas educacionais na teoria histórico-cultural. In: MOURA, M. O. de (org.). Educação escolar e pesquisa na teoria histórico-cultural. São Paulo: Loyola, 2017. p. 13-46.
DAVÍDOV, V. V. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico. Moscú: Progreso, 1988.
DAVÝDOV, V. V. Tipos de generalización en la enseñanza. 3. ed. Habana: Editorial Pueblo y Educación, 1982.
KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
KOPNIN, P. V. Fundamentos lógicos da ciência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
MOURA, M. O. de; ARAUJO, E. S.; SERRÃO, M. I. B. Atividade Orientadora de Ensino: fundamentos. Linhas Críticas, Brasília, v. 24, p. 411-430, fev. 2019.