INTERSECCIONALIDADE

UMA ABORDAGEM CONCEITUAL PARA A PESQUISA EM FORMAÇÃO DE PROFESSORAS – UFFS/CAMPUS CHAPECÓ

  • Michele Batista Universidade Federal da Fronteira Sul
  • Renilda Vicenzi

Resumo

 

O presente texto tem por objetivo analisar o conceito da interseccionalidade, enquanto campo teórico. A perspectiva da interseccionalidade compõe a pesquisa de dissertação, em fase inicial, com abordagem na formação de professoras que ingressam nas licenciaturas com mais de 25 anos de idade[1], tendo como locus a UFFS – Campus Chapecó. Para melhor compreensão do leitor optamos pelo uso recorrente de metáforas (Misoczky, 2009) como uma alternativa de melhor alcance sobre o significado do conceito, sendo fonte elucidativa aos necessários entendimentos que culminam, ainda que de forma breve, no debate sobre a interseccionalidade ser um caminho de resistência epistêmica contra as desigualdades.

Vieses de resistência! Com o amadurecimento do conceito de interseccionalidade pode-se afirmar que essa é uma expressão que se encontra disponível para contribuir com a essência do termo. Resistência que constrói vieses que vão tomando contornos diferenciados a depender do contexto, para continuar existindo e permitindo a existência minimamente digna de vidas humanas. Mas em especial a resistência após a constatação inicial e real das múltiplas opressões que perpassam os corpos das mulheres negras e pobres, até que a interface dessas desigualdades pudesse ser reconhecida através do histórico de lutas por elas travado.

Importante mencionar que este não é um texto que pretende apresentar resultados de pesquisas com dados empíricos ou mesmo um compilado de análises e debates desenvolvidos desde a marcação do termo realizada em 1989. Bem menos pretensioso, utilizando-se de alguns trabalhos já publicados, é uma indicação para auxiliar na construção de pontes de entendimentos, para os que, assim como a mestranda iniciam sua jornada de apropriação dos seus significados. Em especial, como já sinalizado, tornou-se um instrumento que contribuiu para a apropriação da base teórico conceitual da pesquisa em desenvolvimento com a inserção do Mestrado em Educação da UFFS. Neste sentido a pergunta que nos guia aqui é: Como, em perspectiva interseccional podemos olhar para as múltiplas desigualdades de raça, gênero e classe?

Podemos inferir que a interseccionalidade é uma ferramenta que nos permite analisar realidades a medida em que tenciona para uma observação atenta às diversidades presentes e, portanto, pode tornar-se um instrumento de minimização de desigualdades. Segundo o que nos apresenta Piscitelli (2008), o termo interseccionalidade (que também pode aparecer na literatura sob a expressão  “categorias de articulação”), foi cunhado pela jurista norte-americana Kimberle Crenshaw, em 1989, e que foi a partir dessa abordagem que a noção de interação entre as formas de subordinação existentes ganhou destaque. O entendimento da existência de sobreposição de opressões, realidade das mulheres negras, seria alcançado com o reconhecimento dessa realidade. É importante fazer memória, que ainda antes de o termo ser cunhado por Crenshaw, seu surgimento acontece a partir do movimento de mulheres ativistas negras, tendo no discurso de Sojourner Truth, um dos exemplos mais categóricos, também referendado por bell hooks (2014), como um ato de resistência imprescindível ao movimento feminista negro acontecido ainda em 1852[2].

A prática da interseccionalidade também acompanhou as décadas de 1960 e 1970, quando o ativismo das mulheres negras as levou a perceber que fracionar as suas vulnerabilidades em nada contribuía para a superação destas.

Portanto, reconhecer que abordagens interseccionais já eram práticas antes da oficialização do termo, não significa apontar para uma deslegitimização do movimento realizado por Crenshaw, mas contribuir para o não apagamento dessa prática que foi iniciada pelo ativismo feminino negro (Kyrillos, 2020). A compreensão do que é interseccionalidade reivindica adentramos na historicidade do conceito e com isso, adentrarmos na trajetória do feminismo negro, que especialmente no Brasil, não há como descolar das vivências de subordinação e escravidão produzidas pelo colonialismo e as trajetórias diaspóricas[3], marcadas na população de pele negra.

Os apontamentos de Collins; Bilge (2020), seguem nessa direção quando afirmam que houve um apagamento das vozes das mulheres negras no Brasil. E essa opção pelo apagamento do feminismo negro, foi uma opção política que contribuiu para a construção de uma realidade de “desimportância” dessas vozes e impossibilitou a compreensão da desigualdade racial. Por sua vez, esse cenário também dificultou a popularização do entendimento e desenvolvimento do conceito de interseccionalidade, que ficou restrita nos estudos internos dos movimentos feministas negros e na academia, sendo pouco entendido ou reconhecido como essencial pela sociedade.

A interseccionalidade é uma ferramenta analítica ligada às questões que tem seu cerne nas desigualdades e foi reconhecida fortemente a partir de uma matriz de luta do feminismo negro. Essa vigilância do termo, para que ele não seja solapado é um movimento crítico que exige atenção permanente. (Collins; Bilge, 2020. p. 13). Conforme compartilha bell hooks (2015), embora se reconheça a importância do movimento feminista branco, este é insuficiente para teorizar sobre as experiências natas das mulheres negras, pois estas sofrem com a realidade de interação de outras violências. Daí a necessidade da manifestação feminista negra e a partir dessa, também a manifestação de feminismos negros que carregam experiências plurais, traçando estratégias de fortalecimento a partir de bases comuns ao mesmo tempo em que especificidades não são minimizadas (Kyrrilos, 2020).

É a partir da complexidade interseccional, que o uso de metáforas figurou como caminho recorrente na literatura para abordar o termo, pois “a metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso libera o poder que algumas descrições têm de re-apreender a realidade. [...] abre possibilidades de interpretação, permite linhas de fuga do pensamento, novas e múltiplas conexões [...].” (Misoczky, 2009. p. 1169). Desde que nomeou o termo interseccionalidade Crenshaw tem se utilizado da metáfora das avenidas para melhor explicar a sobreposição de discriminações, onde aborda a existência de duas avenidas, que em princípio representariam a raça e o sexo e que as trabalhadoras negras em algum momento estariam em encruzilhadas onde sofreriam com a incidência dessas duas realidades, experimentando então com uma violência ampliada.

A partir dessa metáfora utilizada por Crenshaw, outras inspirações também foram se agregando, considerando que, “[...] o desafio político é rejeitar quaisquer expectativas literárias elitistas, jargões acadêmicos, escrita complexa na terceira pessoa e abstrações científicas paradoxais [...] (Akotirene, 2022, p. 19). Assim sendo, independente de qual metáfora seja eleita como a mais completa para a construção do nosso entendimento ela precisa estar acessível na promoção do que mais se espera dela: que impulsione o entendimento e a concretização de ações interseccionais para que seu uso seja naturalizado, e que sejam essas metáforas, cenários que contribuam para continuarmos atentas e atentos frente a novas formas de discriminação e subjugação, que venham a se manifestar.

Entender as raízes do conceito sobre interseccionalidade também requer buscar por construções teóricas já realizadas que, para além de informação e resgate do histórico de lutas, trazem um sentimento de “desengavetamento” dessas produções. Sob a perspectiva de Collins; Bilge (2020), a interseccionalidade usada como uma ferramenta analítica contribui com a elaboração de seis ideias centrais que circundam com a compreensão da desigualdade social existente; do reconhecimento das relações de poder interseccionais; no contexto social em que aparecem; indicando uma relacionalidade e uma complexidade que culminam na justiça social.

Tendo isso presente, um caminho possível é pensar a interseccionalidade como sendo uma alternativa de resistência epistêmica, categorizando-a em uma teoria social crítica, como contribui Patrícia Collins (2022). A autora analisa a interseccionalidade como sendo um projeto de conhecimento resistente, pois congrega ideias e histórias diversas a partir da teorização crítica.  Inspirada na decolonialidade, ainda que fale mais diretamente sobre as ações possíveis a partir dos feminismos negros, a autora faz apontamentos perfeitamente aplicáveis aos demais grupos que também sofrem com as intersecções de violações. Em sua concepção, a interseccionalidade busca nas teorias sociais acadêmicas semelhantes, suporte para a construção de análises, porém transcende à estas pois possui uma perspectiva conceitual ampliada, a medida em que traz consigo a resistência teórica de movimentos que questionam o modo colonizador, ligando então a resistência teórica à práxis quando questiona as injustiças e as desigualdades sociais que vivenciam.

 

Teorizar a resistência tem sido essencial para os projetos de conhecimento dos povos oprimidos [...] qualquer que seja a forma de opressão que vivenciem – raça, classe, gênero, sexualidade, idade, capacidade, etnia e nação -, grupos subordinados têm interesse pessoal em resistir a ela. (Collins, 2022, p. 128).

 

O reconhecimento desse novo jeito de analisar e construir realidades se dá com a contribuição do campo da Educação. Carla Akotirene em entrevista dada a TV Educativa da Bahia em 2019, compartilhou pontos de sua trajetória de formação e apontou a necessidade do reconhecimento dos conhecimentos a partir do Sul Global com as vivências produzidas diretamente com populações e intelectuais que sentem e acompanham de perto os resultados produzidos pela desigualdade social. Os reflexos da educação com o uso das ferramentas analíticas da interseccionalidade, repercutem na formação política dos grupos subjugados, e isso produz alternativas de mudança, uma vez que atualmente quem fortemente opera a política de educação no Brasil é a branquitude. Ademais, durante a entrevista, Akotirene diz que “[...] se a gente não for submetida/ submetido a uma formação política a gente faz aliança com a colonialidade e não com as ferramentas que foram pensadas para as nossas resistências” (Perfil [...], 2019, 7 m 19s).

Ao abordar sobre a importância do lugar de fala, Ribeiro (2017), analisa a existência e persistência do abafamento também das produções de conhecimento forjadas pelos feminismos negros, em uma realidade onde as condições sociais são decisivas para facilitar ou dificultar a visibilidade e a legitimidade do conteúdo produzido. A autora lembra ainda que o lugar de fala a partir do qual escreve, pode sim considerar as vivências individuais em um dado momento, mas é na coletividade nos aspectos comuns, permeados pelo contexto histórico, considerando aspectos de gênero, raça, classe, aspectos geográficos e políticos em que esses grupos vulnerabilizados se encontram, que as resistências são construídas.

Assim, o ingresso de mulheres com mais de 25 anos no ensino superior na UFFS- Campus Chapecó com objetivo de formarem-se professoras nos conduz a dialogar e pensá-las (corpos e subjetividades), pelo campo teórico conceitual da interseccionalidade. Afinal, quando partimos de uma situação de desigualdade, como em nossos sujeitos de pesquisa que são mulheres, mães, trabalhadoras, estudantes, não considerar os fatores que nela estão imbricados, prejudica o desenvolvimento de ações e de políticas públicas que tensionem para a mitigação e superação deste quadro e contribuem para o enfraquecimento de ações propositivas que já existam e façam parte do cotidiano dessas pessoas.

O local de teorização, debates e pesquisa, em geral está com a academia, que produz e publiciza sobre o conceito, mas o local de transformação da realidade está no alinhamento destas teorizações e debates, no resgate de ações produzidas para além da academia e com as vivências individuais e coletivas, desenvolvidas no interior dos grupos vulnerabilizados.

Entender a importância do desenvolvimento de uma formação de professoras a partir da abordagem interseccional é importante, especialmente se estas adentram na academia com uma idade que foge aos padrões estabelecidos como idade ideal para o ingresso no ensino superior. Acolher suas trajetórias e pensar na formação destas futuras profissionais, a partir das suas vivências, considerando as dificuldades e as facilidades que trazem em sua bagagem, proporcionará à estas mulheres a possibilidade de uma formação e pode reverberar positivamente para uma instituição que tanto preza pelo desenvolvimento de movimentos de inclusão, independência intelectual e financeira de seus egressos, como a UFFS.

Mesmo tendo se tornado conhecida, a interseccionalidade ainda não conseguiu estabelecer conexões estruturais de modo a se tornar um conhecimento comum. Pelo contrário, ainda precisa ser dita e reivindicada e não raro, acaba por gerar conflitos entre os que necessitam ter suas demandas contempladas e aqueles que optam por entendimentos generalistas. Assim num esforço contínuo, a interseccionalidade precisa continuar sendo conhecida, reconhecida e teorizada, transpondo o nível de entendimento de conceito para ocupar um lugar de ação, um lugar de resistência epistêmica e o ambiente de formação de professores é terreno fértil para que ações interseccionais sejam apreendidas e incorporadas.

 

[1] Estabelecer um limite etário como ideal para a inserção no Ensino Superior (ainda que este não figure na legislação como obrigatório), é realizada a partir do disposto na legislação pela Lei 9.394/1996 (LDB):  a criança deve ingressar na educação infantil aos 4 anos e aos 6 anos no 1º ano do ensino fundamental, etapa que deve ser concluída aos 14 anos. Na faixa etária dos 15 aos 17 anos, o jovem deve estar matriculado no ensino médio.

[2] hooks refere-se ao ano de 1852 como sendo o ano da Conferência na qual Sojourner se pronunciou. Já Ribeiro (2017), refere que o discurso aconteceu no ano de 1851 e também traz um apanhado sobre a história de Sojouner Truth e a transcrição do discurso da ativista. O fato: Truth, durante a Segunda Conferência Anual do Movimento do Direito de Mulheres em Akron, Ohio (EUA),  ficou em pé, tomou a palavra e discursou sobre a força de trabalho feminino, sobre a exploração da mulher negra escravizada, sobre o sequestro do seu direito de ser mãe e sobre a sua existência enquanto mulher mostrando os seios e proferindo: “Acaso não sou uma mulher?” O discurso embebido de coragem trouxe à tona o questionamento da raça e da questão de gênero em um contexto onde o feminismo branco estava se moldando, ao mesmo tempo que contribuía para o silenciando do feminismo negro.

[3] Por vivências diaspóricas podemos entender todo o processo de alteração de vidas dos povos africanos, trazidos ao Brasil através da imigração forçada para a sustentação da economia através da produção agrícola no regime escravocrata. Mais informações sobre essas vivências podem ser encontradas em https://www.geledes.org.br/diaspora-africana/ 

Publicado
01-10-2024
Seção
Movimentos Sociais e Práticas Transformadoras