DA CANETA À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

TECNOLOGIAS INTRÍNSECAS A SABEDORIA HUMANA

Resumo

Este texto faz parte das reflexões teóricas de pesquisa  em  andamento do Mestrado em Educação, na qual o tema é as possibilidades de uso das tecnologias de Inteligência Artificial Generativa (IAG) no Ensino Superior para formação inicial de professores. Nosso objetivo geral é investigar a presença da IAG no Ensino Superior nas Universidades Federais da Região Sul do Brasil no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, com o intuito de identificar a extensão dessa integração e o nível de formação oferecido aos docentes sobre essas ferramentas. Traremos aqui um breve histórico sobre o avanço das tecnologias até chegar na IAG e uma reflexão da sua intencionalidade ao ser utilizada na educação, respondendo às perguntas: afinal, o que é uma tecnologia? Como é a relação entre tecnologia, ser humano e natureza?

A tecnologia permeia quase todos os aspectos da nossa vida, pode ser entendida como o conjunto de conhecimentos, habilidades, métodos e processos usados na criação de bens ou serviços ou na realização de alguma tarefa. A palavra "tecnologia" origina-se do grego "tekhne", que significa "arte, habilidade, ofício", e "logia", que se refere ao estudo de algo (Mitcham, 1994; Santaella, 2003). Segundo Kelly (2010), a tecnologia não é apenas um acúmulo de ferramentas, mas um produto da evolução e desenvolvimento humano, intrínseco às sociedades humanas.

A comunicação móvel é um exemplo claro dessa evolução, inicialmente os telefones celulares eram grandes e pesados, usados apenas para chamadas de voz. Com o tempo, evoluíram para dispositivos mais complexos, incorporando funções como mensagens de texto e acesso à internet. A comunicação móvel não apenas respondeu às necessidades da sociedade, mas também moldou novas formas de interação social e consumo de informação. Essa interação entre tecnologia e sociedade é dinâmica, pois à medida que a sociedade muda, surgem novas demandas e desafios, e a tecnologia evolui para atender a essas necessidades, além da criação de novas necessidades. Qual é o impacto disso para a sociedade?

A tecnologia reflete e molda nossos valores, desejos e medos. Por exemplo, a invenção e popularização do automóvel no século XIX representaram mudanças nos padrões de vida, mobilidade e organização das cidades. Mumford (1934) traça a evolução tecnológica desde a invenção da roda, que revolucionou o transporte e, por extensão, o comércio. Inovações domésticas como máquinas de lavar e geladeiras mudaram a vida das pessoas, economizando tempo e esforço em tarefas cotidianas e alterando a dinâmica familiar e social. Na saúde, avanços como vacinas e equipamentos de diagnóstico mudaram nossa expectativa de vida e a maneira como tratamos doenças, trazendo benefícios inestimáveis para a saúde pública.

A revolução digital, com os computadores, a internet e smartphones, transformou a maneira como nos comunicamos, trabalhamos e interagimos. A era digital conectou o mundo de maneiras inimagináveis e mudou a economia, a cultura e a vida social. Santaella (2003) observa que a digitalização invadiu todos os campos da arte e da comunicação, representando uma transformação radical. A cultura digital não é apenas uma nova forma de representação ou um novo canal de comunicação, mas um novo ecossistema em que todas as nossas relações estão sendo reorganizadas.

Castells (1999) analisa a ascensão das redes digitais e como elas moldaram a economia, a política e a cultura, destacando que a era da informação trouxe uma nova estrutura social, caracterizada por redes globais de comunicação e troca de informações. Segundo Castells, as redes digitais facilitaram o comércio global, a distribuição de recursos e a comunicação entre empresas e consumidores, transformando mercados tradicionais, criando novos modelos de negócios e novas formas de trabalho global. Esse desenvolvimento tecnológico se ampliou, chegando até o que temos hoje, que são as tecnologias de IA.

Para  Nilsson (2009), o termo "inteligência artificial" foi cunhado por John McCarthy em 1956 durante a conferência de Dartmouth, que é amplamente considerada como o evento que deu início formalmente ao campo da IA. No entanto, Alan Turing é considerado o “pai da IA”, que proporcionou uma formalização dos conceitos de algoritmo e computação com a máquina de Turing, modelo abstrato de um computador digital. Conforme Santaella (2021, 2023), a IA abrange desde programas simples, que realizam tarefas específicas, até sistemas complexos, capazes de aprender e se adaptar ao longo do tempo. Há uma distinção importante entre IA tradicional e IA generativa. A IA tradicional envolve tecnologias desenvolvidas para imitar aspectos da inteligência humana em tarefas específicas, como reconhecimento de voz ou processamento de dados. Por outro lado, a IAG utiliza algoritmos avançados para criar conteúdos variados, incluindo música, arte, textos e soluções de problemas, conforme discutido no livro "Recomendações para o Avanço da Inteligência Artificial no Brasil" (ABC, 2023).

Turkle (2011) discute o impacto dos computadores e da internet na psicologia humana, destacando como essas tecnologias reconfiguram nossas relações interpessoais e nossa compreensão do eu. Estamos na era dos smartphones e da “Internet das Coisas”, onde a conectividade é fundamental, estes dispositivos têm mudado não apenas como nos comunicamos, mas também como gerenciamos aspectos diários de nossas vidas, desde navegação por GPS até transações financeiras. 

Os benefícios da revolução digital nos saltam aos olhos, mas será que tudo nela é positivo? Quais cicatrizes ficarão desse acelerado desenvolvimento tecnológico em um mundo capitalista? Teixeira (2015) pensa da seguinte forma

 

Adaptamos nossos corpos para dirigir carros, guindastes e empilhadeiras, o que tem levado à atrofia de nossos músculos, que precisa ser compensada por exercícios regulares. O que ocorrerá no caso das tecnologias mentais, que substituirão nosso raciocínio, memória e capacidade de calcular? A convivência quase ininterrupta com o mundo virtual se tornou um desafio para a plasticidade do cérebro humano, que precisa se reconfigurar com mais agilidade (p.17).

 

Essa é uma reflexão importante, pois nosso cérebro é dinâmico e vai se adaptando com os estímulos. Nicolelis (2020) faz um alerta sobre a IAG para o fato de que elas também podem nos levar a uma dependência crescente de assistência algorítmica para o pensamento e a análise crítica. Ou seja, estamos perdendo certas habilidades básicas que foram fundamentais para o desenvolvimento humano.

Zuboff (2019) destaca que, apesar das máquinas avançadas poderem simular comportamentos que aparentam ser 'inteligentes', esses sistemas carecem de consciência e compreensão real. Eles funcionam baseados em algoritmos programados para responder a padrões de dados. Mas podemos realmente chamar isso de inteligência?  Conforme o pensamento de  Arendt (2007) que discute a inteligência humana como uma manifestação de capacidades que englobam não apenas o raciocínio lógico, mas também a habilidade de julgar, pensar criticamente e compreender o mundo ao nosso redor, a IA não pode ser considerada inteligente. Nicolelis (2020) ressalta que por isso a IA não é inteligente, segundo ele, a inteligência é uma propriedade dos organismos que têm relação com outros organismos e com o seu ambiente. Ou seja, é uma propriedade da vida, e ela foi gerada com o processo chamado de seleção natural, processo explicado por Charles Darwin (1859) na qual esclarece que a seleção natural é mais que só um processo evolutivo, ocorre pela necessidade de sobrevivência e adaptação das espécies ao seu ambiente. Esse processo ocorre há milhões de anos e ainda ocorre. Esse processo não é computável, não pode ser reproduzido por algoritmos. Há aspectos e valores intrínsecos aos seres humanos que uma máquina não pode replicar como a intuição, empatia, solidariedade, entre tantos outros.

Integrando a ideia de Vigotski (1978) a essa discussão, compreendemos que o desenvolvimento intelectual é profundamente moldado pelas ferramentas culturais e pelo ambiente social. Vigotski enfatiza a importância das interações sociais e das ferramentas mediadoras no desenvolvimento cognitivo, ressaltando que ferramentas, quando usadas para substituir o esforço cognitivo em vez de apoiá-lo, podem atrofiar o desenvolvimento de funções mentais superiores, como o pensamento crítico. Qual o efeito disso para a mente humana? Estamos conseguindo extrair sabedoria do conhecimento?

A IAG é uma tecnologia, tal como uma caneta. A caneta é um exemplo de uma tecnologia antiga que ainda usamos hoje. Embora pareça simples, a caneta é uma ferramenta versátil que vai além de simplesmente escrever. Ela pode ser usada para desenhar, destacar informações importantes e até mesmo como um instrumento de comunicação e expressão pessoal. Assim como a caneta revolucionou a forma como registramos e compartilhamos informações, a IA está transformando a maneira como interagimos com o mundo digital. Ambas as tecnologias, embora diferentes em complexidade e aplicação,  estão a disposição e servem para  ampliar nossas capacidades de realizar atividades  facilitando assim nossas vidas.

A questão é: para que vamos utilizar uma caneta? Uma caneta, embora criada para escrever, carrega o potencial tanto para construir quanto para destruir. Pode ser usada para expressar ideias que inspiram ou para propagar palavras que ferem. Com uma simples assinatura, pode-se iniciar movimentos que salvam vidas ou causar grande destruição. A pergunta que fica é: com que propósito utiliza-se a IA e IAG ? É pertinente utilizar IA na Educação? De que forma? Para quê e a quem serve essa tecnologia?

Embora essas tecnologias tenham trazido muitos benefícios e comodidades às nossas vidas, elas têm donos, estão inseridas em um contexto capitalista e precisam ser democratizadas. Em uma entrevista da Escola Viva com Paulo Freire (1993), a entrevistadora faz a seguinte pergunta “O senhor defende a ideia de que as escolas precisam incorporar as novas tecnologias, a TV ou computador, no processo de aprendizagem?”, Freire responde

Claro, eu acho que a primeira condição para uma educadora ou um educador é ter o seu discurso válido é estar à altura do seu tempo. Quer dizer uma educadora que nega a televisão, uma educadora que nega a computação, que nega o FAX, que nega a máquina copiadora não está a altura do seu tempo. Agora o que é preciso é ter decisão política e competência científica para saber por todos esses instrumentos que a tecnologia avançada nos oferecem hoje a serviço de uma mente crítica. Quer dizer, não é possível você negar em nome de humanismo, você negar a tecnologia. Porque a tecnologia inclusive não é obra de satanás, é obra da gente, quer dizer, foram os homens e as mulheres que fizeram a tecnologia para melhorar a vida. Agora que ela seja usada para piorar a vida de alguns e melhorar a vida de poucos, essa é a questão política que está por trás da tecnologia, eu não posso negar a tecnologia porque ela está na mão dos poderosos, quer dizer, o que eu preciso é brigar para ganhar poder também sobre os instrumentos. (18:47)

 

A IA não  tem que ser utilizada para perpetuar desigualdades ou simplificar o processo educacional, mas para fortalecer uma prática pedagógica que seja humanizadora. A questão política envolvida é não fazer da tecnologia o centro do universo, pois ela não irá resolver todos os nossos problemas.  Zuboff (2019), no seu livro “A era do capitalismo de vigilância” mostra  como nossos dados, comportamento online, foram retirados do mundo online de graça e passaram a ser vendidos para empresas  que se beneficiam porque fazem propaganda dirigidas especialmente aos nossos hábitos de consumo, com o auxílio dos algoritmos. Considerando o exposto, questionamos: como os líderes mundiais têm lidado com essa questão? Como essa tecnologia vem sendo regulamentada no Brasil e no mundo? Estamos preparados para lidar com seus impactos?

Além disso, existe uma luta com a questão ambiental, que não deixa de ser luta política. Segundo Teixeira (2015)

A tecnologia nos desacopla da natureza de forma radical. Faz tempo que a perdemos de vista. A natureza se tornou, no máximo, uma palavra da qual só nos lembramos quando ocorrem grandes catástrofes, como terremotos e tsunamis, que, nos lapsos de pensamento animista, julgamos ser uma espécie de vingança do planeta contra a devastação ambiental: a vingança de Gaia (p.17).

 

O autor reflete que o avanço tecnológico nem sempre resulta em benefícios éticos ou coletivos e que já deveríamos ter aprendido essa lição, após as duas bombas atômicas no século XX. A competição entre as pessoas, intensificada pela presença de máquinas superinteligentes, vai superar as tentativas de tornar as melhorias tecnológicas acessíveis para todos, ficando apenas para grupos privilegiados, e aqui está novamente a questão política. Nesse ambiente competitivo, vai ser difícil evitar a autodestruição da humanidade devido às mudanças climáticas, um dos maiores desafios das próximas décadas. A quantidade de energia elétrica gasta por tecnologias avançadas já aumentou e  vai cada ano aumentar exponencialmente, porque existe uma economia gigantesca por trás disso. 

Artaxo, Rizzo e Machado (2024) explicam que, atualmente, com o uso de IA, os cientistas climáticos conseguem analisar dados de satélite, sensores e modelos climáticos para entender melhor as mudanças no clima e desenvolver previsões mais precisas. Por exemplo, os algoritmos de aprendizagem de máquina podem identificar relações complexas em grandes conjuntos de dados climáticos, melhorando a precisão dos modelos e previsões climáticas. Apesar dessa aplicação positiva, é necessário abordar cuidadosamente os desafios éticos e o impacto ambiental do treinamento de grandes modelos de IA. O equilíbrio entre os avanços tecnológicos e as práticas éticas é importante para garantir que a IA seja usada de forma responsável na luta contra as mudanças climáticas. Ou seja, as mesmas IAs usadas para a análise, previsão e prevenção das emergências climáticas também contribuem para a sua ocorrência. É preciso ponderar quanto aos seus impactos e benefícios.

O objetivo aqui não é criticar o uso desses recursos, sobretudo quando usado em favor da coletividade, mas refletir sobre sua finalidade e sobre quem se beneficia direta ou indiretamente com isso? Um ser humano jamais vai ser substituído por uma máquina, mas pode se tornar dependente dela. Uma máquina não vai tomar decisões melhores que as nossas, mas refletem também a ideologia, de forma intencional ou não, e os interesses de quem a criou. E se passarmos a acreditar, como sociedade, que ela consegue decidir e tomar melhor decisão que as nossas? (Nicolelis, 2020).

Assim como a caneta, que evoluiu de uma simples ferramenta de escrita para um instrumento de expressão humana, a IA ou IAG também tem a mesma capacidade. No entanto, é importante lembrar que, enquanto as tecnologias se aperfeiçoam, nossa responsabilidade ética e social deve crescer na mesma proporção. O desafio de integrar a IAG no Ensino Superior e na educação, perpassa a reflexão do como fazer de maneira a fortalecer a formação crítica. Como é a interação do ser humano com a tecnologia? Como utilizamos? A quem ela beneficia? Como “molda” nossa comunicação e aprendizado? Para que e para quem ela serve? As respostas, assim como uma escrita de uma caneta no papel, está em nossas mãos. 

Publicado
01-10-2024
Seção
Educação, Cultura e Linguagem