A EDUCAÇÃO PÚBLICA SOB OS TENTÁCULOS DO NEOLIBERALISMO

UMA ANÁLISE DOS MATERIAIS DIDÁTICOS DE EMPREENDEDORISMO DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE CHAPECÓ/SC

  • Jefferson Joacir Kuszkowski Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS
  • Bruno Antonio Picoli Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS

Resumo

Na presente pesquisa em curso no Mestrado em Educação, buscamos investigar os avanços e impactos do neoliberalismo na Rede Municipal de Ensino de Chapecó/SC por meio de uma análise crítica e interpretativa dos discursos que permeiam os materiais didáticos de Empreendedorismo distribuídos às escolas municipais. Nesses discursos, procuramos compreender os valores e dimensões educativas com o interesse de reconhecer as formas de difusão do pensamento e racionalidade neoliberais e seus impactos na Educação Pública.

Para além de uma teoria político-econômica, o neoliberalismo também pode ser compreendido como uma forma de pensamento e racionalidade que molda as subjetividades e as práticas individuais e coletivas de acordo com a lógica do Mercado e da concorrência (Dardot; Laval, 2016; Gentili, 2000). Aqui, também concebemos o neoliberalismo como fenômeno educativo, vista a forma como intercambia saberes com uma intenção educativa, ou seja, com o objetivo de intervir nas subjetividades dos sujeitos (Plá, 2022). A Educação, nesse contexto, é vista como um campo estratégico para a difusão do pensamento/racionalidade neoliberal e sujeita a processos de mercantilização, padronização, precarização e desintelectualização, comprometendo a formação integral e crítica dos sujeitos em favor da cidadania (Laval, 2019).

A adoção de uma perspectiva epistemológica pluralista a partir da Educação nos permite dialogar por meio de uma abordagem crítica e interpretativa, centrada na relação ética com o Outro e na crítica ao fenômeno educativo neoliberal (Plá, 2022; Tello e Mainardes, 2012). Propomos analisar e compreender o nosso referencial empírico através da lente de uma fenomenologia hermenêutica apoiada pela filosofia levinasiana. Essa abordagem dá centralidade à ética na relação com o Outro, reinterpretando a fenomenologia e a hermenêutica tradicionais. Mobilizaremos autores como Emmanuel Lévinas (1997), Sebastián Plá (2022), Gert Biesta (2017), Laclau e Mouffe (2015), Hannah Arendt (2016), Jorge Larrosa (2018), entre outras vozes, para auxiliar na nossa investigação.

É imprescindível que os concidadãos do município de Chapecó, locus desta pesquisa, sejam capazes de lidar com a complexidade do encontro entre diferentes mundos, buscando estabelecer relações éticas com as culturas que lhes são estranhas.  O município está localizado em uma região de fronteira de Santa Catarina, de onde exerce forte atração de mão de obra de migrantes internos e estrangeiros por meio das agroindústrias. Em 2022, o Centro de Atendimento aos Imigrantes (CAI) atendeu 17.422 estrangeiros, sendo 10.409 venezuelanos, 3.414 haitianos e 3.599 de outras nacionalidades . O Centro de Informações Estratégicas em Vigilância de Saúde (CIEVS) contabilizou, no mesmo ano, 13.664 migrantes estrangeiros de 44 nacionalidades cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS) do município. Em 2021, as escolas municipais contavam com mais de 600 alunos estrangeiros de diversas nacionalidades.

Diante dessa diversidade étnica e cultural, é pertinente que os manuais didáticos selecionados pela Secretaria Municipal de Educação de Chapecó (SEDUC) considerem essas necessidades basilares e sejam analisados quanto a sua pertinência à formação cidadã. Assim como a superação dos conflitos étnico-raciais históricos entre os descendentes de migrantes europeus, que se estabeleceram sobre o território indígena Kaingang e mantêm uma postura de conquista, e as comunidades indígenas nativas subalternizadas.

Os pacotes educativos não são uma novidade na Rede Municipal de Ensino de Chapecó e são parte da rotina das escolas municipais há uma década, embora com maior intensidade nos últimos anos. Em outubro de 2023, o Conselho Municipal de Educação de Chapecó (COMED) acatou a solicitação da SEDUC para regulamentar e atualizar a Matriz Curricular do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Chapecó. Esse documento reduziu em um terço as aulas dos componentes curriculares de História, Ciências, Geografia e Educação Física, a fim de incluir os componentes de Educação Financeira, Pensamento Computacional e Empreendedorismo.

O impacto imediato dessa mudança foi a diminuição do número de aulas disponíveis para os professores dos componentes curriculares reduzidos e a ausência de profissionais qualificados para ministrar os novos componentes. A SEDUC deu preferência aos professores efetivos para lecionar Pensamento Computacional, enquanto as vagas de Educação Financeira, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, aos pedagogos. No caso de Empreendedorismo, nos anos finais, foram preenchidas por professores dos componentes curriculares reduzidos, efetivos ou temporários, mesmo que fora de sua área de especialização (CHAPECÓ/COMED 47/2023).

As chamadas para preenchimento das vagas em 2024 vincularam os novos componentes curriculares aos componentes curriculares tradicionais reduzidos. Professores formados para lecionar nas áreas de Pedagogia, História, Ciências, Geografia e Educação Física agora passaram a lecionar também os novos componentes alheios a sua formação. Os professores de História, por exemplo, vieram a ministrar também as aulas de Empreendedorismo mediante a aplicação de material didático adquirido pela Prefeitura Municipal ao custo de mais de 4 milhões de reais, somados os materiais para os novos componentes, com dispensa de licitação (CHAPECÓ. Portal da Transparência: Inexigibilidade de Licitação 001/2024).

Além dos materiais didáticos para os novos componentes curriculares, a Prefeitura Municipal prevê para 2024 o gasto de 19 milhões de reais em despesas discricionárias para aquisição de materiais didáticos para os componentes tradicionais (CHAPECÓ. Portal da Transparência: Edital de Pregão Eletrônico 492/2023) à revelia daqueles distribuídos gratuitamente às escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) do Ministério de Educação. É uma  característica do neoliberalismo enquanto política-econômica o uso do Estado para abertura e garantia de novos mercados em detrimento dos gastos sociais (Harvey, 2008). A palavra de ordem é a maximização dos lucros, independente das consequências sociais, em oposição à formação cidadã e democrática.

Destacamos destes, o material didático de Empreendedorismo, que será nosso principal referencial empírico nesta pesquisa qualitativa, junto dos documentos normativos, publicitários e jornalísticos relacionados. A questão que nos norteia, em uma análise a partir da Educação, é quais são os valores e as dimensões educativas presentes nos discursos dos materiais didáticos de Empreendedorismo distribuídos na Rede Municipal de Ensino de Chapecó/SC nos anos de 2023 e 2024? Para respondê-la, propomos uma análise crítica e interpretativa dos discursos presentes nos materiais didáticos de Empreendedorismo para compreender o avanço do pensamento e racionalidade neoliberais e o neoliberalismo como fenômeno educativo.

O manual a ser analisado é o "Manual do Educador" da "Coleção Aprender para Crescer: Empreendedorismo na Infância", de autoria de Gladys Mariotto Rodrigues, direcionado para os anos finais do Ensino Fundamental. O manual didático de Empreendedorismo possui dimensões de 20 x 28 cm, é colorido, com capa de cartão supremo de 250 g/m² e miolo em papel couchê de 115 g/m². Conta com 140 páginas, sendo está a sua 1ª edição, publicada em Curitiba/PR em 2022. O manual está em uso em todas as escolas municipais de Chapecó desde o final do mês de março de 2024, após a formação de professores sobre a sua utilização em sala.

A partir dos discursos presentes nesse manual didático distribuído nas escolas públicas municipais de Chapecó/SC, propomos: investigar o neoliberalismo enquanto fenômeno educativo, analisando como ele interfere na subjetividade dos sujeitos e diferenciando-o de outras formas de organização da vida econômica; debater as concepções de infância e adultez em um contexto neoliberal de desresponsabilização pelo mundo; discutir as concepções de professorado e escola, explorando o processo de desprofessorização dos professores em meio ao avanço das perspectivas do Mercado sobre a educação; analisar as concepções de mundo, sua relação com o Outro, com o saber e com a ética, através da lente da filosofia levinasiana; e, compreender o neoliberalismo enquanto pensamento e racionalidade que permeia todos os aspectos da vida e investigar os meios de propagação dos valores neoliberais (como competitividade, individualismo e meritocracia).

Para Plá (2022), um fenômeno educativo se caracteriza pela interação entre sujeitos, saberes e lugares com uma intenção educativa, de intervenção na subjetividade dos sujeitos. O neoliberalismo enquanto fenômeno educativo reúne esses diferentes elementos com a intenção deliberada de intervir nas subjetividades com o intuito de moldá-las à imagem do Mercado. Por meio da educação, o pensamento e os valores neoliberais são naturalizados e/ou racionalizados, determinando concepções hegemônicas de mundo e das relações sociais. Desse modo, todos os aspectos da vida humana são compreendidos pela lógica do Mercado (Dardot; Laval, 2016).

Enquanto discurso totalizante, o neoliberalismo é antiético e ególatra, não deixando margem para um relacionamento ético para com a alteridade (Lévinas, 1997), ceifando novos mundos possíveis ainda no berço. O neoliberalismo culpabiliza as pessoas pelo seu suposto insucesso e traz com a culpa o sofrimento. O Empreendedorismo, em tese, através das formações de professores e dos suportes didáticos-pedagógicos, promoveria em sala de aula um discurso neoliberal desumanizante a fim de naturalizá-la como única possível.

Segundo Levinas (1997), a relação com o Outro é caracterizada por uma responsabilidade ética que não pode ser reduzida a um cálculo ou interesse egoísta, mas deve ser vivida de forma incondicional e desinteressada. A primazia da Ética da Alteridade, proposta pelo autor, implica na abertura para a diferença, no diálogo e na disposição de ser afetado pelo Outro como fundamento. Dessa forma, uma Educação que valoriza a alteridade deve promover a formação de cidadãos conscientes de sua responsabilidade ética em relação ao Outro, acolhimento e respeito as diferenças incondicionada a reciprocidade.

Para Gert Biesta (2017), há uma captura ou descaracterização da Educação quando essa é desprovida de seu caráter formativo e trata o “aprendente” apenas como um consumidor com necessidades a serem atendidas (aluno-cliente). Nesse ponto, também dialogamos com Hannah Arendt (2016), sobre a perda da dimensão formativa da Educação moderna, sendo que o seu único objetivo é servir à criança em detrimento de outros métodos que consideram as suas necessidades formativas com vistas à cidadania e a relação ética para com o Outro. Tal como Arendt, Jorge Larrosa (2018, p. 103) também concebe a Educação como um modo pelo qual os velhos no mundo os entregam o mundo aos novos “para que o salvem da ruína, renovando-o”.

Larrosa (2018) critica os modelos educacionais neoliberais e destaca o professor como agente fundamental para o processo educativo. Quando o uso de um suporte didático-pedagógico específico se torna uma obrigação tácita, esse espaço para o novo é destruído. Portanto, é de grande importância debater as concepções de professorado e escola diante de um processo de desprofessorização dos professores em meio ao avanço das perspectivas de Mercado sobre a educação. Ressalta-se o processo pelo qual os professores se veem obrigados a ministrar componentes curriculares alheios as suas formações tendo como norteador um material didático a ser aplicado em sala de aula.

Gert Biesta (2017) argumenta que talvez a melhor razão para a resistência da escola seja defender o valor do crescimento de qualidade em um mundo que frequentemente prefere manter as pessoas como crianças. Diante disso, é pertinente debater as concepções de infância e adultez em um contexto neoliberal cuja desresponsabilização dos sujeitos pelo mundo torna-se a regra. Sobretudo em um mundo que odeia as pessoas, sobretudo aquelas provenientes das periferias, negras ou imigrantes. Reduzidas a meras consumidoras, desumanizadas e desprovidas de cidadania. Estudantes são vistos pelo Mercado tanto como consumidores (Gentili, 2000), inclusive de materiais didáticos, quanto como uma força de trabalho de reserva acrítica, constantemente responsabilizados por seu suposto insucesso.

Busca-se, assim, realizar uma análise política do discurso neoliberal (Laclau; Mouffe, 2015) e do neoliberalismo enquanto fenômeno educativo a partir da fenomenologia hermenêutica levinasiana (Plá, 2022; Lévinas, 1997) com o intuito de questionar e enfrentar essa perspectiva hegemônica de educação — que detém um status social de “verdade” a partir de uma concepção própria de empreendedorismo e outros conceitos correlatos —, a fim de promover uma educação ética e alteritária, que valorize à docência, a formação integral e a justiça social.

 

Palavras-chave: Neoliberalismo. Empreendedorismo. Fundamentos da Educação.

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

BIESTA, Gert. Boa educação na era da mensuração. Cadernos de Pesquisa, v.42, n.147, p.808-825, set./dez. 2012. Disponível em: https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/9/28. Acesso em: 09 Jun. 2024.

CHAPECÓ. Centro de Atendimento ao Imigrante (CAI) atendeu 174 mil imigrantes em 2022. Prefeitura Municipal de Chapecó, Chapecó, 23 dez. 2022. Disponível em: https://www.chapeco.sc.gov.br/noticia/6327/cai-atendeu-174-mil-imigrantes-em-2022. Acesso em: 09 jun. 2024.

CHAPECÓ. Educação lança projeto inovador de inclusão de estrangeiros. Prefeitura Municipal de Chapecó, Chapecó, 14 abr. 2021. Disponível em: https://www.chapeco.sc.gov.br/noticia/3455/educacao-lanca-projeto-inovador-de-inclusao-de-estrangeiros. Acesso em 09 jun. 2024.

CHAPECÓ. Portal da Transparência: Inexigibilidade de Licitação 001/2024. Disponível em: https://transparencia.e-publica.net/epublica-portal/#/chapeco/portal/compras/licitacaoView? params=%7B%22id%22:%22MV85NjA5%22,%22mode%22:%22INFO%22%7D&entidade=1499. Acesso em: 08/06/2024.

CHAPECÓ. Portal da Transparência: Edital de Pregão Eletrônico 492/2023. Disponível em:
https://transparencia.e-publica.net/epublica-portal/#/chapeco/portal/compras/licitacaoView? params=%7B%22id%22:%22MV85NTk5%22,%22mode%22:%22INFO%22%7D&entidade=1499. Acesso em: 08/06/2024.

COMED/CHAPECÓ. Processo COMED Nº. 047/2023: Solicitação de Regulamentação/atualização da Matriz Curricular do Ensino Fundamental 2. Chapecó: Secretaria Municipal de Educação, 27 out. 2023.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DIÁRIO DO IGUAÇU. Chapecó é porta de entrada de imigrantes. Diário do Iguaçu, Chapecó, 24 nov. 2022. Disponível em: https://diregional.com.br/diario-do-iguacu/2022-11-24-chapeco-e-porta-de-entrada-de-imigrantes. Acesso em: 09 jun. 2024.

GENTILI, Pablo. Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3202012. Acesso em: 09 Jun. 2024.

LARROSA, Jorge; RECHIA, Karen; CUBAS, Jacques (Org.). Elogio do professor. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa. São Paulo: Boitempo, 2019.

LEHER, Roberto. Apontamentos para análise da correlação de forças na educação brasileira: em prol da frente democrática. Educação & Sociedade, Campinas, v. 40, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019219831. Acesso em: 09 Jun. 2024.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997.

PLÁ, Sebastián. Investigar la educación desde la educación. Madri: Morata; Cidade do México: UNAM, 2022.

RIPPLINGER, Fabiane. Estrutura comercial do bairro Efapi - Chapecó/SC enquanto subcentro, a relação com as agroindústrias de carne e seus reflexos na vida da população. Observatorium: Revista Eletrônica de Geografia, 14, 2023, p. 277-289. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/374945068. Acesso em: 09 Jun. 2024.

TELLO, César; MAINARDES, Jefferson. La posición epistemológica de los investigadores en Política Educativa: debates teóricos en torno a las perspectivas neo-marxista, pluralista y pos-estructuralista. Archivos Analíticos de Políticas Educativas, v. 20, n. 9, Mar 2012. Disponível em: http://ri.uepg.br:8080/riuepg//handle/123456789/806. Acesso em: 09 Jun. 2024.

Publicado
01-10-2024
Seção
Fundamentos da Educação