EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA NO BRASIL
ANÁLISE DAS PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS (1920-2020)
Resumo
Nas últimas décadas, o avanço do neoliberalismo e do neoconservadorismo (Apple, 2013) associado à ascensão de políticas antidemocráticas no Ocidente (Brown, 2019) tornou novamente relevante o debate sobre as relações entre educação e democracia. No Brasil, o tema tem sido retomado nos últimos anos em virtude do desmonte dos valores democráticos promovidos pelas políticas educacionais neoliberais e conservadoras, sobretudo a Reforma do Ensino Médio, o Movimento Escola Sem Partido e o Programa Escola Cívico-Militares (PECIM). As referidas políticas ofereceram legitimidade para o controle e a perseguição de docentes nas escolas e universidades públicas, contribuindo para fragilizar os compromissos com a democracia e com a educação emancipatória (Boutin; Flach, 2023; Goergen, 2020). O sistema educacional brasileiro tem se tornado cada vez mais subserviente aos interesses privados e mercadológicos (George, 2020).
O apoio de parte da população à agenda autoritária e ao retorno da ditadura no Brasil – culminando na invasão e depredação da sede dos três poderes em Brasília no dia 08 de janeiro de 2023 – faz-nos refletir sobre uma diversidade de aspectos. A evidente fragilidade da cultura democrática nos obriga a indagar se a escola e a universidade têm efetivamente contribuído para a formação de uma sociedade democrática. Essas inquietações motivaram a retomada dos debates sobre as relações entre educação e democracia na produção teórica nacional e internacional e, especialmente, a releitura dos princípios teóricos brasileiros que, desde os anos 30 do século passado, vêm aportando contribuições.
O presente texto é derivado de uma pesquisa mais ampla centrada na análise da cultura democrática entre os estudantes universitários. Por ora, optamos por apresentar uma parte desse estudo, condensando o debate teórico acerca da educação e da democracia no Brasil. A intenção foi abordar conceitualmente essa temática para entender como ela foi desenvolvida no país, em particular na área da educação. Em decorrência da extensão das produções sobre o tema, selecionamos alguns livros e artigos, priorizando as obras de Anísio Teixeira (1971; 1984, 1997), Paulo Freire (2016; 2018), Florestan Fernandes (1976), Demerval Saviani (1999; 2017; 2020), Maria Victória Benevides (1996; 2016) e Marilena Chauí (2000; 2005; 2009).
Tendo isso presente, procuramos analisar o debate teórico-conceitual sobre educação e democracia no Brasil, especificamente no campo da educação. De forma mais específica, o presente resumo visa: (i) conhecer alguns dos principais autores brasileiros que se debruçaram sobre o tema da educação e democracia; (ii) compreender o desenvolvimento temporal desse debate partindo do início do século XX até o começo do século XIX; (iii) comparar as diferentes abordagens teórico-conceituais dos autores, destacando os pontos de convergência e divergência; (iv) compreender o papel da educação para a promoção da cultura democrática.
Para alcançarmos tais objetivos, utilizamos a metodologia de pesquisa qualitativa (Gil, 2002) de natureza bibliográfica (Lima; Mioto, 2007) e caráter teórico-conceitual (Plá, 2022). Embasando-se em Plá (2022), compreendemos a interdependência entre teoria e método, sobretudo na transformação do referente empírico em objeto de pesquisa, o que possibilitou a construção do conhecimento descontextualizado, ou seja, retirado no seu contexto original e inserido neste texto (Plá, 2022).
O debate sobre educação e democracia no Brasil precisa considerar, em primeiro lugar, as desigualdades que perpassaram toda a formação do Brasil desde a introdução do trabalho escravo no final do século XVI (Chauí, 2000). As desigualdades estruturais tardaram o debate sobre o sistema democrático e os direitos civis no Brasil. Além de recente, a democracia representativa foi entrecortada por longos períodos de ditadura e suspensão dos direitos políticos (Carvalho, 2018). A própria educação na história republicana foi um bem escasso, um privilégio de poucos (Bonemy, 2003).
No início do século XX, um dos primeiros pensadores a se preocupar com essa questão foi Anísio Teixeira (1900-1971). Profundamente inspirado na filosofia pragmatista deweyana, o educador baiano analisou o descaso com a democracia no país, posicionando-se em defesa da escola pública democrática (Bonemy, 2003). Ele entendia que a democracia dependia do acesso à escola pública e gratuita.
Essa defesa da educação pública foi expressa no “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” de 1932 que propunha um movimento de renovação e de criação de uma nova política educacional para o país (Teixeira, 1984). A Educação Nova vinculava a escola com o meio social, imbuída de um ideal condicionado pela vida e pautado na solidariedade e cooperação. Contrastava, portanto, com a educação tradicional vigente na época de caráter religioso (Teixeira, 1984). O núcleo da Escola Nova estava na educação essencialmente pública, integral, laica, gratuita, obrigatória e na coeducação (Teixeira, 1984). Essa educação deveria ser contextualizada, baseada no ensino científico e na experiência do aluno, em um ensino dinâmico característico da educação pela ação e do aprender fazendo (Teixeira, 1984).
Enquanto um liberal democrata, o teórico entendia que a instituição escolar oferecia as ferramentas e as possibilidades para promover a sociedade democrática (Lima, 2011). O autor defende, portanto, que se poderia chegar a uma sociedade democrática somente através da educação. Por isso a emblemática frase do autor de que “só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública (Teixeira, 1997, n.p).
Além de Anísio, Paulo Freire (1921-1997) também foi um pensador fundamental, tanto na defesa da democracia quanto na construção da escola pública no Brasil. Partindo da educação revolucionária, o autor entendia a educação enquanto prática de liberdade.
Freire (2018) teceu uma forte crítica à educação tradicional, designada como bancária. Nessa abordagem, a educação se transforma no simples ato de depositar e transferir valores e conhecimentos (Freire, 2018). De acordo com Freire, essa concepção promove a desumanização, opressão e temor pela liberdade (Freire, 2018). Contrário a essa corrente, Freire (2018) trabalha com a ideia de dialogicidade enquanto essência da educação como prática de liberdade. Trata-se do entendimento da construção mútua entre educador e educando e em abordar a “opressão” enquanto um objeto de reflexão crítica (Freire, 2018).
Freire (2016) defende uma concepção transformadora, democrática, humanizadora e dialética de educação. O autor entende que ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar as possibilidades de sua produção ou conclusão, o que implica uma preparação do educando para além dos limites históricos impostos socialmente (Freire, 2016). Desse modo, a educação se apresenta como um ato de intervenção no mundo. A educação é, neste sentido, uma prática política permanentemente (Freire, 2016). Na concepção freiriana, portanto, a democracia está atrelada à autonomia do aluno e implica a participação ativa dos estudantes no processo de ensino e aprendizagem. Segundo Freire (2016), o regime democrático se realiza pelo poder popular e pela compreensão dos sujeitos de sua condição histórica e social.
O sociólogo marxista Florestan Fernandes (1920-1995) também acreditava na educação como um ato político voltado à formação do cidadão como crucial para a construção da democracia.
O engajamento de Florestan na Campanha em Defesa da Escola Pública no final dos anos 50 contribuiu decisivamente para a compreensão dos desafios e dos papéis que cabem à educação num país periférico e dependente. A produção intelectual e política de Florestan sobre a educação reflete seus fortes compromissos com uma concepção político-revolucionária da educação (Leher, 2012). Essa leitura foi possibilitada pela conceituação da formação histórico-social brasileira de capitalismo dependente que, para o sociólogo, impediu a realização de uma reforma educacional democrática no país (Leher, 2012). Essa inter-relação entre a educação e a estrutura social, foi defendida por Fernandes (1976) na emergência de envolver os cidadãos nas práticas e princípios democráticos (Fernandes, 1976).
No final de década de 1980 e início dos anos 1990, sobretudo no período corresponde à elaboração da Constituição de 1988 e da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB) de 1996, o teórico marxista defendeu que só haveria transformações significativas na educação por meio da revolução (Leher, 2012).
O quarto importante educador brasileiro que analisou as relações entre educação e democracia foi Dermeval Saviani. Com base no marxismo histórico-dialético, o autor teceu profundas críticas ao movimento Escola Nova. Segundo Saviani (1999), o movimento escolanovista faz parte das teorias não críticas da educação. Para ele, essas teorias concebem a educação como autônoma e procuram compreendê-la sem considerar a estrutura social em que está inserida (Saviani, 1999).
Dentre as críticas à Escola Nova, Saviani (1999) elenca três teses políticas da educação: (i) Seu caráter reacionário associado a contradição entre a participação política das massas e os interesses da burguesia; (ii) Seu caráter pseudocientífico, ao entender e confundir o ensino com a pesquisa, deixando os conteúdos em segundo plano; (iii) Apesar da democracia ser um dos seus lemas, a Escola Nova não é democrática (Saviani, 1999). Isso acontece porque ao priorizar a dimensão qualitativa em detrimento da quantitativa, ocorreu a melhoria da qualidade educacional apenas para uma elite (Saviani, 1999).
Desse modo, Saviani (1999) se posiciona a favor de uma pedagogia revolucionária de base crítica na qual a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade. Nessa pedagogia, a prática social e os conteúdos estão entrelaçados (Saviani, 1999). Com isso, o conceito de democracia em Saviani (1999) está imbuído de uma dimensão substancial, englobando a questão da igualdade e transformação social. O autor marxista indica que não se pode inferir que a democratização das relações internas na escola é condição suficiente para a democratização da sociedade. Isso acontece em virtude da tensão existente entre a estrutura social e a escola (Saviani, 1999).
O pedagogo entende a democracia não como um dado existente, mas enquanto uma conquista social (Saviani, 1999). Compreende, também, a limitação da concepção democrática liberal calcada nos procedimentos formais de representação política. Para Saviani (2017), essa concepção deveria evoluir na direção de sua transformação em democracia real. Portanto, a exigência de uma práxis revolucionária presente na pedagogia histórico-crítica enquanto uma educação humanizadora, de excelência e de formação do estudante voltada à transformação social (Saviani,1999; 2017; 2020).
No rol dos teóricos brasileiros que debruçaram-se sobre o tema cabe mencionar a socióloga Maria Victória Benevides (2016; 1996). Analisando o contexto brasileiro pós-redemocratização, ela defende que a democracia não existe sem a educação e a formação de cidadãos democráticos. Em aproximação com John Dewey, Benevides (2016) argumenta que a democracia não se restringe a um regime político ou forma de governo, mas comporta um modo de vida.
Esse movimento requer a universalização do acesso de todos à escola e, caracteriza-se enquanto um projeto de longa duração que comporta a: (i) formação para os valores republicanos e democráticos; (ii) formação para a tomada de decisões políticas nos diferentes níveis (Benevides, 1996). Por valores republicanos, Benevides (1996) entende o respeito às leis, ao bem público e a responsabilidade requerente ao exercício do poder político. Já os valores democráticos vão além e contemplam o reconhecimento da igualdade, o respeito aos direitos humanos e à vontade da maioria (Benevides, 1996).
Para o segundo elemento, Benevides (1996) cunhou o termo “cidadania ativa” que é confluente ao cidadão com direitos e deveres, participante da esfera pública e criador de novos direitos. Nesse sentido, a autora evidencia a importância do processo educativo, sobretudo na formação de personalidades democráticas (Benevides, 1996).
No lastro dessa discussão, Marilena Chauí também é fundamental para compreendermos a relação entre educação e democracia no Brasil. Para a filósofa marxista, o que o dificulta a construção da democracia e da cidadania no país são as desigualdades existentes, as relações sociais hierarquizadas e a presença assídua do autoritarismo na sociedade brasileira (Chauí, 2009; 2000). A autora considera, ainda, que a democracia não se constitui somente como um regime político, mas comporta uma sociedade democrática (Chauí, 2005).
De acordo com a filósofa, uma sociedade democrática indica: (i) isonomia e isegoria; (ii) que o conflito é considerado legítimo e necessário; (iii) forma sociopolítica que busca conciliar a igualdade e liberdade com a existência da desigualdade real; (iv) a criação de novos direitos, o que possibilita a democracia estar aberta às mudanças temporais; (v) que os direitos são conquistas e não benesses; (vi) garantia da distinção entre poder e governante, indicando que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que os sujeitos políticos não são meros votantes, mas eleitores (Chauí, 2005; 2009).
Chauí (2009) entende que o direito é um elemento constitutivo da democracia e uma sociedade democrática pressupõe a ampliação dos direitos existentes e a criação de novos direitos. Ao contrário dos privilégios e carências, os direitos não são particulares e específicos, mas universais (Chauí, 2005). Com isso, uma política democrática está intrinsecamente atrelada à universalização dos direitos. Se pensamos a educação como um direito da cidadania é necessário resgatar seu sentido profundo de origem, qual seja, o de formação para a cidadania enquanto um direito universal (Chauí, 2009). Trata-se de uma noção firmada no conceito de cultura democrática e perfilada no cultivo de cidadãos democráticos (Chauí, 2009).
À guisa das considerações finais, a pesquisa evidenciou uma pluralidade de abordagens teórico-conceituais sobre educação e democracia no Brasil, sobretudo na questão de como se alcançar a democracia. Enquanto na concepção liberal de Anísio Teixeira (1971) a democratização da sociedade seria possível por meio da instituição escolar, as concepções marxistas apontaram, também, a importância da estrutura social. Para autores como Freire (2016), Fernandes (1976) e Saviani (1999) a tensão existente entre a escola e a estrutura social é um elemento fulcral a ser considerado na luta pela democracia.
Em segundo lugar, o alargamento do conceito de democracia enquanto modo de vida e sociedade democrática foram evidenciados por Chauí (2009) e Benevides (1996). Ambas as autoras, analisaram o contexto brasileiro pós-redemocratização, apontando os direitos e cidadania como o cerne da democracia. Elucidaram, ainda, o papel da educação na formação de cidadãos democráticos frente ao autoritarismo constitutivo da sociedade brasileira.
O ponto de convergência dos teóricos analisados é a defesa da educação e democracia enquanto requisitos de uma sociedade democrática. No contexto brasileiro atual de avanço de políticas neoliberais e neoconservadoras (Apple, 2013), o processo de construção e fortalecimento da democracia enseja a retomada desse debate pela área da educação. Essa análise, como aponta Saviani (2017), deve estar amalgamada a questão social, principalmente quando miramos a formação de personalidades democráticas (Benevides, 2016).