INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-COMUNIDADE NA FORMAÇÃO EM SAÚDE

COMO SUPERAR A DICOTOMIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA?

Autores

  • Keli Regina Dal Prá Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Campus Florianópolis-SC
  • Cláudio Claudino da Silva Filho Universidade Federal da Fronteira Sul

Palavras-chave:

Sistema Único de Saúde (SUS), formação profissional em saúde, currículo, integração ensino-serviço-comunidade

Resumo

  1. Introdução

A integração ensino–serviço–comunidade (IESC) surge como estratégia crucial para efetivar a função formativa do SUS ao promover um ensino que dialoga diretamente com a prática e a realidade social. Conforme Krawczyk, Schneider e Silveira (2018), a IESC introduz o SUS como campo formativo real, articulando os saberes acadêmicos, os profissionais de saúde e a comunidade em processos dialógicos e emancipatórios. Esse modelo se apoia na Política Nacional de Humanização, favorecendo o protagonismo dos sujeitos envolvidos e o fortalecimento de vínculos com os usuários e com a gestão local. A IESC não é uma atividade extra ao currículo, mas sim um eixo estruturante da formação em saúde (Krawczyk; Schneider; Silveira, 2018).

No contexto das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), a IESC é reconhecida como elemento orientador do perfil do trabalhador da saúde, que deve ser generalista, crítico e reflexivo (Brasil, 2002; Zarpelon et al., 2020). Zarpelon et al. (2020) ressaltam que o desenho curricular deve superar dicotomias entre teoria e prática, incorporando espaços em que o SUS seja vivenciado como localização real de intervenção e aprendizado. A IESC, portanto, sustenta o compromisso com competências essenciais como integralidade, equidade, comunicação e liderança (Brasil, 2002; Zarpelon et al., 2020).

Exemplos concretos de IESC demonstram seu potencial formativo. Negrini et al. (2017) relataram a experiência da Unidade Escola Estratégia de Saúde da Família “São Francisco de Assis” em Bragança Paulista, onde 183 acadêmicos realizaram mais de 3.600 atendimentos entre janeiro e junho de 2017, promovendo acolhimento, discussão coletiva de casos e continuidade do cuidado em parceria com gestores municipais. Já na Universidade de Brasília (UnB), o SIESCO — Sistema de Integração Ensino-Serviço-Comunidade — articulou, a partir de 2016, disciplinas interprofissionais e estágios supervisionados por preceptores do SUS, fortalecendo a formação integrada sob a ótica da educação permanente e dos Programas Pró‑Saúde e PET‑GraduaSUS (Souza et al., 2017).

O objetivo geral é analisar, a partir da literatura científica, como a integração ensino-serviço-comunidade se aproxima ou distancia da formação em saúde, buscando caminhos para superar a dicotomia entre teoria e prática no Sistema Único de Saúde (SUS). 

 

  1. Metodologia

Trata-se de uma revisão integrativa de literatura, em uma abordagem qualitativa. A busca foi realizada no primeiro semestre de 2025, através dos descritores “Sistema Único de Saúde (SUS)”, “formação profissional em saúde”, “currículo”, e “integração ensino-serviço-comunidade”, nos seguintes buscadores e/ou bases de dados: Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Scientific Electronic Library Online (SciELO), e PubMed (base de dados e sistema de pesquisa online para literatura biomédica e de ciências da vida, desenvolvido e mantido pelo National Center for Biotechnology Information - NCBI da National Library of Medicine - NLM nos Estados Unidos da América - EUA). A análise dos dados ocorreu de maneira crítico-reflexiva, a partir dos de referenciais teóricos, filosóficos e epistemológicos que ancoram o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e o SUS, e a organização dos resultados ocorreu com a identificação dos principais pontos em comum entre os autores e a sistematização das ideias em torno do tema central do estudo.

 

  1. Resultados e discussão
A IESC representa uma ruptura com o modelo tradicional de ensino que separa teoria e prática, aproximando os estudantes da realidade do SUS desde o início da graduação. Silva, Santos e Amorim (2018) relatam que, na experiência em Arapiraca (AL), as etapas de construção de cartografia social, diagnóstico em parceria com a comunidade e reconhecimento dos saberes locais funcionam como ponte entre o currículo acadêmico e as práticas cotidiano nos serviços de saúde. Esse processo favorece a formação reflexiva e empática, evidenciando a necessidade de currículos que articulem saberes formais e contextuais (Silva; Santos; Amorim, 2018). Entretanto, nem todas as iniciativas conseguem romper efetivamente com a dicotomia teoria-prática. Lima et al. (2016), ao analisar a interlocução ensino-serviço na formação de enfermeiros, apontam que, embora a imersão na Atenção Primária à Saúde (APS) propicie experiências vividas do SUS, a permanência dessa interlocução depende do protagonismo docente e da capacitação para realizar mediação crítica com os estudantes (Lima et al., 2016). Assim, se houver fragilidade na formação do corpo docente ou ausência de planejamento conjunto com os serviços, a IESC corre o risco de se tornar um estágio pontual que pouco contribui para a integração curricular efetiva. O SUS, como lócus formativo, exige uma articulação interprofissional e intersetorial que vá além do estágio, incorporando metodologias ativas e educação permanente (Campos et al., 2014). Estudos em odontologia destacam que a combinação da IESC com metodologias ativas fortalece a formação reflexiva, promovendo educação permanente como parte integrante da prática profissional (Rodrigues et al., 2020). A retomada da integralidade do cuidado, então, só é alcançada quando a IESC é estabelecida como projeto político-pedagógico estruturante, não apenas atividade isolada. Para superar essas lacunas, é essencial formalizar convênios entre instituições de ensino e serviços de saúde, com pactuação clara de responsabilidades, espaço para supervisão contínua e participação da comunidade (BRASIL, 2018). A criação de instâncias de cogestão, como comitês ou núcleos institucionalizados de IESC, facilita o diálogo permanente entre IES, SUS e usuários, promovendo avaliação conjunta, ajustes curriculares e fortalecimento do vínculo ensino-prática (BRASIL, 2018). Dessa forma, a integração pode se converter efetivamente em eixo estruturante da formação em saúde. Por fim, a superação da dicotomia entre teoria e prática requer compromisso estratégico das instituições formadoras e dos serviços do SUS. A adoção de práticas reflexivas, comuns em metodologias ativas, e a promoção de educação permanente no ambiente de trabalho potencializam essa transformação. Observa-se que a IESC, quando bem estruturada e institucionalizada, possibilita a construção de saberes contextualizados e críticos — condição indispensável para formar profissionais que atuem na efetivação dos princípios do SUS (Silva; Santos; Amorim, 2018; Lima et al., 2016).

 

  1. Considerações finais

Apesar dos avanços, persistem desafios importantes: a fragilidade dos espaços de cogestão formal entre universidade, serviço e comunidade, o desconhecimento das dinâmicas locais pelos atores envolvidos e o risco de se tratar a IESC como política pontual e não estrutural (Costa; Fadel apud Zarpelon et al., 2020; Zarpelon et al., 2020). A consolidação da IESC exige, além do comprometimento institucional, a criação de instâncias permanentes de diálogo (Comitês Gestores dos Contrato Organizativo de Ação Pública Ensino-Saúde - Coapes), alinhadas aos programas do Ministério da Saúde, para garantir que essa integração ultrapasse o papel de estratégia isolada e se consolide como dimensão estruturante da educação em Serviço Social e demais cursos da saúde (Zarpelon et al., 2020).

 

Referências

 

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 4 de março de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos da área da saúde. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 mar. 2002.

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução CNS nº 569, de 26 de fevereiro de 2018. Aprova as Diretrizes para a IESC e estabelece pactuações entre IES e SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2018. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2018/res0569_26_02_2018.html. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

CAMPOS, G. W. S.; FEUERWERKER, L. C. M. Analisando as metodologias ativas na formação dos profissionais de saúde: uma revisão integrativa. Sanare, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 73–83, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832014000100010. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

KRAWCZYK, M. B.; SCHNEIDER, A. C. T. de C.; SILVEIRA, J. L. G. C. da. A integração do ensino-serviço-comunidade como promotora da humanização/SUS. Saberes Plurais – Educação na Saúde, [S.l.], v. 2, n. 1, p. 24–25, dez. 2018. DOI: https://doi.org/10.54909/sp.v2i1.88885. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/saberesplurais/article/view/88885. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

LIMA, C. A. de A. et al. A teoria em prática: interlocução ensino-serviço no contexto da atenção primária à saúde na formação do(a) enfermeiro(a). Cuidado é Fundamental Online, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i4.5002-5009. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

NEGRINI, L. D. O. et al. Integração ensino-serviço-comunidade: experiência da Unidade Escola Estratégia de Saúde da Família “São Francisco de Assis”, Bragança Paulista/SP. Revista Ensaios Pioneiros, Bragança Paulista, v. 1, n. 1, 2017. DOI: https://doi.org/10.24933/rep.v1i1.41. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

RODRIGUES, M. S. et al. Integração ensino-serviço-comunidade, metodologias ativas e Sistema Único de Saúde: percepções de estudantes de Odontologia. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/1414-462X2020v28n1p1. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

SILVA, R. R. da; SANTOS, R. de L.; AMORIM, J. F. de. A teoria e a prática caminhando de mãos dadas: a experiência docente no eixo Integração Ensino, Serviço e Comunidade. Revista Docência do Ensino Superior, Belo Horizonte, v. 8, n. 1, p. 179–188, 2018. DOI: https://doi.org/10.35699/2237-5864.2018.2443. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

SOUZA, D. H. de et al. Sistema de Integração Ensino-Serviço-Comunidade: relato de experiência das ações realizadas nas Faculdades de Saúde e Medicina da UnB. Journal of Management & Primary Health Care, Porto Alegre, v. 8, n. 3, 2017. DOI: https://doi.org/10.14295/jmphc.v8i3.665. Acesso em: 14 jul. 2025.

 

ZARPELON, F. et al. Integração ensino-serviço-comunidade: perspectivas do Comitê Gestor Local do Contrato Organizativo de Ação Pública Ensino-Saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/gLZ7L3vvkQPVC8QfCVSZmHK/. Acesso em: 14 jul. 2025.


Agradecimentos: À Bolsa de Pós-Doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC), Edital 20/2024, pelo fomento à pesquisa, e à Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó-SC, e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Campus Florianópolis-SC, pelo apoio acadêmico e incentivo à ciência com qualidade.

Biografia do Autor

  • Keli Regina Dal Prá, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Campus Florianópolis-SC

    Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora do Departamento de Serviço Social, nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Serviço Social e no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Campus Florianópolis-SC

    keli.regina@ufsc.br

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Publicado

24-11-2025