HISTÓRIA, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

FIOS DA HISTÓRIA NO ASSENTAMENTO SANTA ROSA III - ABELARDO LUZ/SC (1985 - 2025)

Autores

Palavras-chave:

Memória, , Assentamento, Agronegócio, : Agricultura familiar; desenvolvimento sustentável; agroecologia

Resumo

  1. Introdução

Em meio às estradas de terra do Oeste catarinense, no Assentamento Santa Rosa III, no município de  Abelardo Luz,  Dona Romilda reconta os tempos de seu avô: “Ele sabia tudo só de olhar o grão. Tinha o feijão chumbinho, o taquara, o tibagi (…) tudo guardado nas tuias.” Essa lembrança não é apenas uma nostalgia. É a memória de um modo de vida  e de um saber que resiste ao esquecimento. O que Romilda transmite, com sua fala carregada de memória, é também um acerto de contas com a história: aquela que foi negada, soterrada pela terra da monocultura, pela cerca do latifúndio, pela máquina do agronegócio. Dona Romilda é agricultora assentada e vive com sua família no Assentamento Santa Rosa III. Toda a sua vida foi marcada pela experiência no meio rural, tendo crescido em um contexto de agricultura familiar. Participou do processo de ocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contribuindo ativamente para a conquista dos 22 assentamentos estabelecidos no município. O presente trabalho  busca compreender a história do assentamento Santa Rosa III a partir da memória e  vivências das famílias assentadas em Abelardo Luz (SC), com foco no Assentamento Santa Rosa III e na história da Romilda e sua família. A trajetória dessas famílias, como a de Dona Romilda, é marcada por uma tensão permanente entre lembrança e esquecimento, entre a afirmação de uma identidade camponesa e a força homogeneizadora do capital.

Como aponta a historiadora Márcia Motta (2001), a memória é um campo de disputa. Sua construção não é neutra, nem espontânea: ela opera em tensão com a história e com as formas de poder que definem o que pode ou não ser lembrado. O Brasil é um país atravessado por uma “amnésia social” em relação aos conflitos agrários. Essa amnésia não é apenas descuido: é projeto. Um projeto que, ao longo de séculos, buscou apagar da memória nacional a resistência camponesa, a posse tradicional da terra, as lutas por justiça e redistribuição. Como escreve Motta, “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais”.

Segundo a assentada “Até meus nove anos era muito bom. Tinha terra pra todo mundo trabalhar. Depois, com doença, dívida... meu avô morreu e ficou só um pedacinho de horta.” A perda da terra, que para muitos seria apenas um dado material, aparece no relato de Dona Romilda como um trauma coletivo. O fim da terra representa o início de um longo período de instabilidade, de trabalhar como meieiros, de plantar para outros, de nunca colher o suficiente.“No começo a gente pegava terra dos outros, limpava tudo, quando dava certo, tinha que entregar. Aí pegava outro pedaço ruim, e começava de novo. Nunca sobrava nada.” Essa instabilidade, que tanto marcou a experiência de milhares de famílias no Brasil rural, expressa a desigualdade fundiária estrutural e os limites históricos impostos ao pequeno agricultor pela concentração da terra.

Como nos alerta Milton Santos, essa desigualdade não é um acaso, mas parte de um projeto: “a distribuição do território é seletiva e injusta, pois responde à lógica do capital, que subordina o uso do espaço aos interesses da produção hegemônica” (SANTOS, 2006, p. 92). No campo brasileiro, essa lógica se manifesta na estrutura fundiária excludente, que historicamente marginalizou os pequenos produtores como a família da Romilda, convertendo-os em mão de obra precarizada,  como “meieiros, ” quando não expulsando-os para as periferias urbanas.

Nesse processo, o Estado brasileiro, longe de ser neutro, desempenhou o papel de legitimação dessa distribuição desigual da terra. Desde os tempos do Império até a modernização conservadora do século XX, sucessivas políticas públicas favoreceram a concentração fundiária, beneficiando o latifúndio e, mais recentemente, o agronegócio voltado à exportação, que como veremos mais a frente é o desafio que esses movimentos enfrentam atualmente. Como afirmou Milton Santos, “o território, que deveria ser o palco da solidariedade, tornou-se o instrumento da segregação” (SANTOS, 2001, p. 185). Nesse contexto, o modo de vida camponês não foi apenas inviabilizado economicamente, foi politicamente atacado, ideologicamente deslegitimado e socialmente silenciado.

A trajetória de Dona Romilda, marcada pela perda da terra, pelo trabalho como meieira, pela insegurança alimentar e pela ausência de futuro, é o retrato vivo desse processo histórico. Um processo que, ao mesmo tempo em que concentra riquezas, também produz esquecimento. E é por isso que escutar e registrar essas histórias importa tanto: porque elas permitem reelaborar o que a história oficial quis calar.

É nesse contexto que Romilda e sua família descobrem o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. “Em 85 eu já queria ir para o acampamento, mas estava esperando meu primeiro filho. A família ficou com medo, disse que era perigoso. Mas eu achava que perigo mesmo era continuar sem terra.” Foi só em 1987, com dois filhos pequenos, que Romilda entrou de vez na luta: “Um com dois anos, outro com dois meses. A gente conheceu o movimento pela igreja, o padre Nelson, os grupos de reflexão... ali a gente começou a entender o que era justiça.”

No caso de Abelardo Luz, o ano de 1985 marca um divisor de águas. Mais de duas mil famílias ocuparam as fazendas Papuan e Sandra, iniciando o ciclo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado. 

A chegada ao acampamento, como ela narra, foi um susto: “Era muita gente, todo mundo com o mesmo sonho, todo mundo ajudando, dividindo comida, remédio, a gente se organizando.” A fala de Romilda não apenas reconta um episódio, mas enuncia uma identidade coletiva: ser sem-terra é também ser parte de uma memória comum.

Apesar das vitórias consolidadas, com 22 assentamentos conquistados em Abelardo Luz, com a criação da Escola Semente da Conquista, essas comunidades enfrentam um cenário de constantes ameaças. A criminalização do MST não é apenas midiática, com ataques  mas jurídica e institucional, resultado direto da aliança entre o latifúndio e os setores do Estado que operam sob a lógica do capital. A disputa pela terra em regiões como Abelardo Luz acirra-se com o avanço do agronegócio, cuja presença próxima aos assentamentos impõe não só barreiras econômicas, mas também ambientais. Produtores monocultores lançam mão de práticas altamente predatórias, como o uso intensivo de agrotóxicos. Esses venenos, dispersos por pulverização aérea ou por sistemas mal controlados, contaminam solos, cursos d’água e até os alimentos cultivados nos assentamentos, tornando-se uma forma silenciosa de agressão territorial. Além do risco direto à saúde, essa prática mina a autonomia dos assentados e confronta frontalmente os princípios da agroecologia. Trata-se, portanto, de um conflito estrutural: de um lado, a reprodução ampliada do capital, baseada na propriedade privada, na monocultura e na exportação de commodities; de outro, a luta por um modo de vida coletivo, sustentável e voltado às necessidades populares.

Um dos objetivos centrais do projeto Nas Trilhas da História e Memória também é fortalecer e dar visibilidade a modos de produção agroecológicos, como o praticado pela família de Dona Romilda. Em contraste com o avanço da monocultura e o modelo produtivo do agronegócio, que sufoca o pequeno agricultor e empobrece a diversidade produtiva, o cultivo agroecológico aparece como alternativa sustentável e vinculada à soberania alimentar. “A gente não vai longe dentro do nosso assentamento... às vezes os filhos da gente produzem soja, e a gente sabe que isso vai matando a terra. É pra grande indústria, não é pra por na mesa da família”, comenta Romilda. Seu relato aponta para a carência de políticas públicas que incentivem o pequeno produtor, mesmo diante da demanda crescente por alimentos saudáveis.

Na propriedade da família, mesmo sem incentivos em larga escala, são produzidos alho, cebola, cebolinha, salsinha, couve-folha, cabochá, batata doce, mandioca, alface, acelga, morango, repolho e outros produtos, destinados à feira, à cooperativa, à merenda escolar e até mesmo ao hotel local. Segundo ela, “se tivesse incentivo para os agricultores, para os pequenos... iam ter mais saúde, não iam lidar com veneno, ia ter mais comida, até mais barata”.

A ausência de políticas de crédito e assistência técnica voltadas à agricultura familiar e agroecológica representa um entrave real, que empurra jovens, filhos de camponeses, para o trabalho precarizado em frigoríficos ou fora do campo. “Se tivesse um incentivo ali no lote, eles fazem bem mais do que estar no Aurora lá se estragando a saúde.” A agroecologia, nesse sentido, é também um projeto de permanência na terra, de cuidado com o meio ambiente e de afirmação de uma cultura camponesa que respeita o ritmo da natureza e o alimento saudável.

Nesse embate, o passado torna-se um instrumento de resistência. Recontar a história da luta camponesa, como faz o Projeto nas Trilhas da História e Memória, é também enfrentar a “amnésia social” que desqualifica o saber popular e glorifica o agronegócio, a produção com venenos e monocultora como inevitável.

Ao recuperar a trajetória de Romilda e sua família, o projeto busca não apenas preservar uma história oral, mas construir um contraponto crítico às narrativas hegemônicas e apontar os desafios a serem enfrentados por essas comunidades frente ao avanço do capitalismo. 

  1. Metodologia

O presente trabalho foi desenvolvido a partir da escuta e do registro das memórias orais de assentados e assentadas da região de Abelardo Luz (SC), nesse caso, com foco na trajetória da família da Romilda. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas, observação direta dos territórios,  coleta de fotografias e documentos disponíveis nos arquivos familiares e jornais locais. O referencial teórico ancora-se nos estudos da história social e da história oral, articulando os conceitos de memória e território. A metodologia busca não apenas a coleta de dados, mas o reconhecimento dos sujeitos entrevistados como produtores de saber histórico e político. Além da pesquisa em territórios de ocupação do MST, o projeto também realizou entrevistas com camponeses caboclos da região do Contestado, em Taquaruçu; com representantes do movimento quilombola em Fraiburgo; com o Padre Cleto e Gesuino; e com moradores da Invernada dos Negros, em Campos Novos. São grupos que, ainda que distintos, se conectam por meio de experiências comuns na luta pela terra e pela preservação de suas memórias e modos de vida.

 

  1. Resultados e discussão

Os relatos coletados evidenciam a centralidade da memória como instrumento de resistência e construção de identidade. A experiência de Dona Romilda exemplifica as formas pelas quais as famílias camponesas resistem ao apagamento simbólico e material promovido pelo agronegócio e pelas políticas públicas historicamente excludentes. A partir das falas da entrevistada, torna-se evidente o vínculo profundo entre memória, pertencimento à terra e luta por justiça social. As ameaças atuais,  como o uso de agrotóxicos, a criminalização dos movimentos de luta por terra e o avanço das monoculturas, revelam a continuidade das disputas e o papel estratégico da memória na mobilização das comunidades assentadas num momento onde os movimentos sociais do campo não tem força para impedir o avanço do agronegócio. 

 

  1. Considerações finais

A história de Dona Romilda não é uma exceção, mas parte de uma narrativa coletiva que precisa ser ouvida e reconhecida. Ao reconstruir essas memórias, este trabalho contribui para o enfrentamento da “amnésia social” (MOTTA, 2003) e para a valorização da história dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. A luta por terra, justiça e dignidade continua a ser atual, especialmente diante da crescente ofensiva do capital sobre os territórios camponeses. O projeto "Nas Trilhas da História e Memória" mostra que há força e saber nas histórias contadas pelos camponeses assentados. 

 

Referências

MOTTA, Márcia Maria Menéndez. História e memória. Cadernos do CEOM, Chapecó: UNOESC, ano 16, n. 17, p. 180-196, 2003.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 6. ed. São Paulo: Edusp, 2001.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST. Atividades marcam os 30 anos de história dos Sem Terra em SC. 2015. Disponível em: https://mst.org.br/2015/05/22/atividades-marcam-os-30-anos-de-historia-dos-sem-terra-em-sc/. Acesso em: 25 jun. 2025.

Informação do projeto PES-2022-0521. Projeto Nas Trilhas da História, Memória e Arqueologia do Conflito na Fronteira Sul.

Biografia do Autor

  • Émerson Neves da Silva

    Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). É professor na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Trabalha com História Social do campo na América Latina, em especial movimentos sociais e ações coletivos rurais. Investiga conflitos agrários constituídos a partir de processos da modernização capitalista da agricultura. Desenvolve estudos sobre a produção do patrimônio cultural rural pelos sujeitos sociais submetidos a conflitos agrários, abordando as interações desse fenômeno com processos históricos de longa duração, a partir da perspectiva da História Global. É líder do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos Agrários, Urbanos e Sociais (NIPEAS). É membro da Rede Internacional de Estudos Históricos do Mundo Rural (RIEHMUR). Atuou como Pró-Reitor de Extensão e Cultura da UFFS, no período de 08/2015 a 08/2019. É membro permanente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFFS) e colaborador do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Educação (PPGPE/UFFS). Autor dos livros Rebeldia camponesa na América Latina: análise comparada da luta agrária do MST e do Neozapatismo, pela Editora CRV; Campo Santo: uma história de almas em luta contra o latifúndio, publicado pela Paco Editorial; Formação do ideário do MST, publicado pela Editora Unisinos; O Mundo do Trabalho em Perspectiva: Uma abordagem sócio-teológica e Palavra e Vida: Os Novos Desafios do Mundo do Trabalho, pela Editora Oikos.

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Publicado

24-11-2025