MANUAL DE DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM-V) COMO DISPOSITIVO DE BIOPODER NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

Autores

  • Heric Carvalho Vieira UFFS
  • Odair Neitzel UFFS

Resumo

  1. Introdução

É notório que o sofrimento psíquico é cada vez mais capturado por categorias diagnósticas que pretendem explicá-lo, controlá-lo e tratá-lo. No centro desse processo está o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), elaborado pela American Psychiatric Association, reconhecido mundialmente como referência para a classificação das chamadas doenças mentais. Mais do que um simples compêndio técnico, pode-se afirmar que o DSM-V participa da produção de verdades sobre os sujeitos, regulando experiências, afetos e condutas. Seus critérios de diagnóstico influenciam desde políticas públicas até relações cotidianas, moldando a forma como a sociedade compreende e responde à diferença, ao sofrimento e à loucura (Caponi, 2014).
Nesse cenário, a presente pesquisa parte da seguinte questão: quais são os efeitos éticos, políticos e ontológicos da consolidação do DSM-V como dispositivo na sociedade contemporânea? Em que medida esse manual, ao classificar transtornos mentais, participa da produção de subjetividades ajustadas às normas sociais e econômicas vigentes? O trabalho propõe-se a investigar como o DSM-V se configura como um operador técnico-discursivo que, ao mesmo tempo que oferece ferramentas clínicas, atua na normatização da vida e na regulação das condutas, contribuindo para uma medicalização difusa da existência.
A justificativa da pesquisa assenta-se na urgência de problematizar os fundamentos e os efeitos de instrumentos diagnósticos que, sob a aparência de neutralidade científica, instauram regimes de verdade que afetam profundamente as formas de viver, de sofrer e de resistir. Num contexto em que o discurso biomédico avança sobre as experiências subjetivas, urge interrogar os dispositivos que capturam a diferença e a transformam em patologia. A análise crítica do DSM-V como artefato estratégico na articulação entre saber psiquiátrico e racionalidade governamental pretende, portanto, lançar luz sobre as tecnologias contemporâneas de poder que atuam sobre os corpos, os afetos e os modos de subjetivação.
Nesse sentido, é imperioso relatar que a função social desta pesquisa consiste em contribuir com o campo da filosofia, da saúde mental e das ciências humanas, oferecendo subsídios teóricos e analíticos para uma compreensão mais ampla e crítica da psiquiatrização da vida. Ao adotar uma perspectiva foucaultiana, o estudo se propõe a desnaturalizar os discursos psiquiátricos hegemônicos. O objetivo geral é analisar o DSM-V como um dispositivo de biopoder, investigando suas implicações para os processos de subjetivação e para os modos contemporâneos de governo da vida. Como objetivos específicos, destacam-se: a) examinar as condições históricas e políticas de emergência do DSM-V; b) identificar os mecanismos pelos quais o manual participa da produção de normalidades e patologias; c) discutir as consequências ético-políticas da expansão diagnóstica e da medicalização da diferença. Trata-se, em última instância, de problematizar a racionalidade que sustenta o discurso psiquiátrico dominante e de afirmar a filosofia como prática crítica capaz de interrogar o presente e criar possibilidades outras de existência.

 

  1. Metodologia

A presente pesquisa foi conduzida a partir de uma abordagem arqueogenealógica, inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, especialmente em A arqueologia do saber (2000a) e nos cursos proferidos no Collège de France, como Segurança, território, população (2008). Essa metodologia investiga as condições de possibilidade de emergência de discursos e práticas que se tornam hegemônicos em determinado momento histórico.
A arqueologia permitiu o mapeamento das formações discursivas que estruturam o campo psiquiátrico moderno, com especial atenção para os regimes de saber que sustentam as classificações do DSM-V. Essa análise concentrou-se nos enunciados, nos conceitos e nas regularidades que organizam o discurso psiquiátrico enquanto um saber institucionalizado, revelando como ele se articula com outros domínios de poder, como o jurídico, o educacional e o biomédico. A genealogia, por sua vez, possibilitou a análise dos dispositivos de poder que atravessam e sustentam o funcionamento desses discursos, revelando como o DSM-V se constitui enquanto instrumento de gestão da vida e de normalização dos corpos e das subjetividades. A genealogia, nesse sentido, funciona como um diagnóstico crítico do presente, tornando visíveis os efeitos políticos e éticos do manual na constituição do sujeito contemporâneo (Foucault, 2000b).
Além das contribuições foucaultianas, o trabalho dialoga com a concepção de dispositivo proposta por autores como Gilles Deleuze (1990), que o entende como um conjunto heterogêneo de práticas, discursos, instituições e saberes em constante reconfiguração, e Giorgio Agamben (2009), que identifica nos dispositivos mecanismos de captura da vida, voltados para a produção de subjetividades dóceis e governáveis. A análise consistiu, assim, em um exame crítico-filosófico das edições e usos do DSM, cruzando fontes bibliográficas e documentos oficiais com o instrumental conceitual fornecido pelos autores estudado

 

  1. Resultados e discussão

A análise identificou três mecanismos centrais que conferem ao DSM-V seu caráter biopolítico, a saber: (I) Ambiguidade das fronteiras entre normalidade e patologia: o manual opera com categorias diagnósticas cada vez mais amplas e difusas, transformando diferenças subjetivas em transtornos mentais; (II) Uso de critérios estatísticos e populacionais: a normatividade psiquiátrica se ancora em parâmetros quantitativos que produzem padrões médios de conduta, desconsiderando as singularidades da experiência; e (III) Expansão contínua das categorias diagnósticas: a cada edição, o DSM amplia sua cobertura sobre aspectos da vida cotidiana, contribuindo para a medicalização da existência e a difusão da psiquiatrização social (Basaglia, 1974; Caponi, 2014).
O DSM-V é, portanto, um dispositivo de segurança que atua tanto na anátomo-política dos corpos quanto na biopolítica das populações, produzindo sujeitos diagnosticáveis e governáveis. Longe de ser um instrumento neutro, sua eficácia reside justamente em mascarar seus efeitos políticos sob a aparência de objetividade científica.  Os resultados sugerem que o DSM-V não apenas classifica transtornos, mas também participa da normatização da vida cotidiana, promovendo processos de medicalização difusa e governamentalidade neoliberal. Ao tensionar os limites entre técnica e política, ciência e poder, sofrimento e gestão, a dissertação evidencia que o DSM-V participa ativamente da produção de uma ontologia normativa da vida.

  1. Considerações finais

A dissertação conclui que o DSM-V deve ser compreendido como um operador técnico-discursivo de biopoder, implicado na produção de subjetividades contemporâneas, na normatização do sofrimento e na exclusão de modos de existência que desafiam a lógica da eficiência e da produtividade. Sua função ultrapassa a clínica, intervindo diretamente na regulação da vida e das condutas.

Referências

 

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?. Tradução de Nilton Milanez. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

BASAGLIA, Franco. A instituição da violência. Revista Tempo Brasileiro,  vol. 35, p. 34-71, 1974.

CAPONI, S. Michel Foucault e a persistência do poder psiquiátrico. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, n. 1, p. 95–103, 2009.

CAPONI, S. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis, v. 24, n. 3, p. 741–76, 2014.

DELEUZE, Gilles. ¿Qué es un dispositivo? In: BALIBAR, Étienne; DELEUZE, Gilles (orgs.). Michel Foucault, filósofo. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155–161.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Sérgio Telles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000a.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.


FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. 3. ed. Tradução de Elisa Monteiro et al. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.




Agradecimentos

 

Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro concedido por meio de bolsa de estudos durante o período de realização deste trabalho. O suporte da CAPES foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, contribuindo de maneira decisiva para a consolidação da formação acadêmica e para a produção de conhecimento comprometido com a crítica e a transformação social.

 

Biografia do Autor

  • Odair Neitzel, UFFS

    Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo com Estágio Sanduíche na UniKassel na Alemanha com a Tese A pedagogia como autogoverno em Johann Friedrich Herbart (2018); Mestre em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ com a dissertação ?Educação na contemporaneidade: reflexões a partir de uma racionalidade comunicativa(2009); Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - RS (2003); Docente do Magistério Superior na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e Filosofia (PPGFIL), nos Cursos de Licenciatura em Filosofia e Pedagogia; Lider do Grupo de Pesquisa Educação, Filosofia e Sociedade (GPEFS); Membro da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação - SOFIE; Membro da Internationalen Herbart-Gesellschaft (https://www.herbart-gesellschaft.de/); Membro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED; Interesse de pesquisa em temas de Filosofia (ética e política) e Educação (fundamentos e filosofia da educação), em pensadores como Habermas, Foucault, Arendt, Herbart, Dewey e correlacionados.

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Publicado

24-11-2025