A CONSTRUÇÃO DO LUGAR ENUNCIATIVO DA MULHER PELO DISCURSO JURÍDICO

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Resumo

  1. Introdução

Este trabalho, fruto da dissertação de mestrado, investiga como o discurso jurídico brasileiro opera na construção do lugar enunciativo da mulher na política. O foco da pesquisa, assim, é a análise, sob perspectiva da Análise de Discurso (AD) materialista, do lugar enunciativo da mulher política a partir de um arquivo de pesquisa composto pela Lei nº 9.504/1997 (Brasil, 1997), que estabelece normas para as eleições; pela Lei nº 12.891/2013 (Brasil, 2013), que traz alterações à lei das eleições; pela Lei 13.165/2015 (Brasil, 2015), que institui novas mudanças e incentiva a participação feminina na política e pela Lei nº 14.192/2021 (Brasil, 2021), que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, além de dados referentes à representatividade feminina no contexto político brasileiro. 

Justificamos a análise pela baixa representatividade feminina no campo político, bem como pela escassez de pesquisas que mobilizam a AD na interface com a participação política feminina. Além disso, a função social da pesquisa se realiza ao contribuir para a luta feminista, ao evidenciar quais são as formas pelas quais o discurso jurídico (re)produz estruturas patriarcais. Dessa forma, objetivamos compreender o funcionamento discursivo do lugar enunciativo da mulher na política brasileira, a partir de documentos jurídicos, examinando os efeitos de sentido produzidos pelas designações femininas presentes na legislação, observando como o discurso jurídico interpelou a mulher como sujeito de direito e refletindo sobre a relação entre linguagem, ideologia e exclusão de gênero na política.




  1. Metodologia

O estudo se ancora-se na AD materialista, fundamentada por Michel Pêcheux, em articulação com o pensamento feminista marxista. A metodologia da AD não se sustenta em uma metodologia fixa e universal; Orlandi (2015), diz que a AD teoriza a interpretação, questionando os sentidos postos e analisando os gestos de interpretação. Quanto ao corpus, a AD entende que sua constituição não é exterior à análise. A escolha dos materiais que compõem o corpus já configura um gesto de interpretação, pois envolve decisões sobre quais propriedades discursivas serão interrogadas. O corpus dessa pesquisa foi construído com recortes discursivos das leis supracitadas, selecionadas de acordo com o critério de regularidade e de presença de dizeres sobre a mulher no âmbito político. Assim, os RDs foram submetidos ao processo de de-superficialização (idem), permitindo a análise dos efeitos de sentido que emergem desses recortes.

 

  1. Resultados e discussão

A análise discursiva dos documentos jurídicos eleitorais permite observar o modo como a mulher é significada na legislação brasileira, revelando produzindo efeitos de sentido que sustentam o seu lugar enunciativo. Para isso, compreendemos o discurso jurídico como um Aparelho Ideológico de Estado (AIE), conforme Althusser (2024), apresentando-se como neutro, mas operando sob lógicas de manutenção da ordem dominante. Segundo Pêcheux (2014), a linguagem no interior dos AIE não é livre, mas regulada por formações ideológicas que determinam o que pode ou não ser dito.

Nesse sentido, ambos os autores citados argumentam que o sujeito é interpelado pela ideologia como sujeito livre e como se suas ações fossem escolhas autônomas. Essa interpelação é o que funda o sujeito de direito, tido como universal e neutro, mas historicamente marcado pelo sujeito masculino e branco. A partir disso, a mulher, ao ser interpelada, já que "[...] a ideologia sempre-já interpelou os indivíduos como sujeitos [...]” (Althusser, 2024, p. 109), também é convocada a ocupar o lugar desse sujeito de direito.

A lei, sustentada pelo princípio de universalidade, propõe-se a tratar todos os cidadãos como iguais. Contudo, a mulher, ao ser incluída na norma jurídica, é tratada como exceção, marcada pela diferença e pela vulnerabilidade, evidenciando a lógica da particularização da lei (Zoppi-Fontana, 2005). 

Para compreendermos como essa posição é construída discursivamente, mobilizamos o conceito de lugar enunciativo, conforme proposto por Zoppi-Fontana (1999). A autora entende o lugar enunciativo como uma posição simbólica, produzido na e pela linguagem, atravessado por relações de força e sentido. O lugar da mulher na política, tal como aparece nas leis analisadas é, portanto, resultado de um processo histórico de exclusão, o que se inscreve no funcionamento da linguagem.

Nesse contexto é que trazemos Rancière (2004), para quem a política é um ato de dissenso; a política acontece quando a parte dos sem parte se insere no espaço e exigem reconhecimento, como é o caso da participação política das mulheres, que pode ser vista como uma disputa por reconhecimento de sujeitos silenciados.

No entanto, como evidenciado na análise, o discurso jurídico, ao mesmo tempo, inclui e neutraliza a diferença, o dissenso. A título de exemplificação, apresentamos a análise do RD1, extraído da Lei nº 9.504/1997 (Brasil, 1997): 

 

  • 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

 

À primeira vista, trata-se de uma promoção de equidade, porém, mesmo ao tentar garantir espaço para a mulher, o enunciado reafirma a assimetria histórica ao não nomear a mulher diretamente, mascarando o caráter específico da desigualdade que a medida legislativa visa compensar. A escolha lexical de “cada sexo” ecoa, ainda, noções biologizantes, produto de uma formação discursiva marcada por saberes médico-jurídicos que inscrevem a diferença entre homens e mulheres como natural e imutável. Nesse recorte, a nomeação por sexo constitui um efeito ideológico que mascara as determinações sociais e históricas de gênero, apagando as desigualdades que justamente justificam a adoção de medidas compensatórias.

Além disso, é importante observar o jogo entre o "mínimo” e o "máximo” do enunciado: a fixação de um mínimo de 30%, e não de 50%, aponta para uma assimetria já pressuposta, já que se espera que os 70% restantes sejam preenchidos, como de costume, por homens. Pêcheux (2014) argumenta que o discurso é constituído tanto pelo que diz quanto pelo que silencia, pelo que faz parecer evidente, e a evidência do discurso hegemônico que é patriarcal, nesse enunciado, aponta para uma memória discursiva na qual as mulheres foram tradicionalmente alocadas a um lugar de ausência no espaço político. 

Há um interdiscurso em funcionamento, ou seja, [...] os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito (Pêcheux, 2014, p. 150, destaque sublinhado nosso). Dessa forma, os sentidos da exclusão das mulheres não são apagados, mas ressignificados na forma de concessão. O discurso da "cota de gênero”, assim, opera como uma nova sujeição da mulher, que só aparece no discurso jurídico-político como sujeito de exceção, cuja presença precisa ser regulamentada, delimitada e autorizada.

Essa autorização se dá no interior do AIE jurídico (Althusser, 2024), uma vez que a lei eleitoral busca reproduzir a ordem social e ideológica dominante, mesmo ao introduzir elementos de transformação. Aqui há, portanto, uma contradição constitutiva: o AIE jurídico enuncia a necessidade de mais mulheres na política, mas o faz por meio de uma regulação que, ao mesmo tempo, marca uma posição de exclusão histórica. Como aponta Pêcheux (2014), o discurso do Estado é sempre ambíguo, pois opera simultaneamente na reprodução e na transformação das formações ideológicas.

A análise do RD1 mostra que, embora a lei proponha uma medida de inclusão por meio da reserva de candidaturas para cada sexo, o discurso jurídico permanece preso a uma lógica binária e universalizante que reforça a exclusão histórica da mulher na política. A mulher é incluída como exceção, revelando um efeito de evidência, que naturaliza a desigualdade ao apresentá-la como natural, óbvio e inquestionável (Orlandi, 2015 e; Pêcheux, 2014).

A tarefa da AD é justamente interromper questionar essa evidência, e é por isso que o recorte em questão não pode ser entendido como mera política de inclusão, pois não é neutra; precisa ser entendida como parte de um jogo ideológico em que o Estado e o discurso jurídico reorganizam a pauta feminista de acordo com seus próprios interesses, sem romper com a estrutura, reinscrevendo o lugar enunciativo da mulher no campo político como regulado, determinado por normas e regras do Estado. Esse lugar enunciativo da mulher é, aqui, o lugar que a legislação permite que ela ocupe no discurso; ao invés de reconhecer as mulheres como sujeitos políticos autônomos, esse gesto discursivo reinscreve a mulher num lugar previamente moldado por uma estrutura normativa e patriarcal. Ou seja, a mulher não existe por sua própria fala ou ação, mas através do Estado, que diz como, onde, quando e como ela pode participar.

 

  1. Considerações finais

Essa pesquisa evidenciou explicitou que o discurso jurídico brasileiro constitui um AIE que, de forma concomitante, propõe a inclusão da mulher no espaço político e reinscreve sentidos que reforçam sua subalternização. 

Dessa forma, concluímos que a construção do lugar enunciativo da mulher no discurso jurídico brasileiro ainda está profundamente condicionada por uma lógica patriarcal, que busca incluir as mulheres no sistema político, sem, contudo, subverter as bases desse sistema, reproduzindo as relações de desigualdade-subordinação. O direito, enquanto aparelho ideológico, opera de maneira ambígua, ao mesmo tempo que reconhece a desigualdade, limita as possibilidades de sua superação ao reinscrever a mulher como sujeito vulnerável, fragmentado e particularizado. Ainda, compreendemos que a mulher, ao se inscrever na cena política da ideologia dominante, não apenas busca representação, mas desestabiliza a ordem que a excluía do âmbito político, ela mostra resistência, e "[...] se há resistência, é porque há luta” (Althusser, p. 125).



Referências

 

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2024.

 

BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 out. 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm. Acesso em: 4 abr. 2024.

 

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas: Pontes, 2015.

 

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

 

RANCIÈRE, Jacques. Aux bords du politique. Paris: Gallimard Education, 2004.

 

ZOPPI-FONTANA, Mónica G. Lugares de enunciação e discurso. Revista Leitura, [S. l.], v. 1, n. 23, p. 15–24, 1999.

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Publicado

24-11-2025