IMIGRAÇÃO, TRABALHO E SOFRIMENTO PSÍQUICO

MEMÓRIAS DE IMIGRANTES VENEZUELANOS NO OESTE DE SANTA CATARINA

Autores

  • Joao Vitor Lombardi Reginato Universidade Federal da Fronteira Sul

Palavras-chave:

imigração , trabalho, sofrimento psíquico

Resumo

Tão antigo quanto é possível narrar, o imigrante é um fato social totalizante e ao mesmo tempo um conceito limite. Ele fascina, atrai, repele e questiona e nos impele ao autoquestionamento. É objeto identificatório e contra-identificatório que indaga a alteridade que constitui o Eu. Na relação entre o Eu e o Outro, o sujeito reconhece sua identidade, por identificação ou diferença. A cultura, como ordem simbólica compartilhada, acentua a diferença, e o encontro entre culturas distintas pode ser vivido como sofrimento. As possibilidades de sofrimento são mediadas por intersecções como gênero, raça e classe.

As migrações transfronteiriças produzem marcas indeléveis nos sujeitos migrantes. A ruptura com a comunidade de origem faz com que o imigrante perca seu lugar na constelação familiar, social e cultural. Perdidas as referências simbólicas habituais, ele se sente invadido por sentimentos como angústia, desamparo, nostalgia e estranhamento. A experiência de imigração, voluntária ou forçada, é sempre traumática e geradora de algum grau de sofrimento psíquico (KOLTAI, 2000; CARIGNATO, 2005; CARIGNATO; ROSA; DEBIEUX, 2006).

A imigração é o movimento de indivíduos ou grupos que cruzam fronteiras nacionais para permanecer  temporariamente ou permanentemente em outro país (OIM, 2015). Se involuntária ou forçada, o deslocamento é uma condição necessária para assegurar dignidade e sobrevivência, uma vez impulsionado por guerras, crises econômicas, políticas e ambientais, ou perseguições. Inclui refugiados e imigrantes humanitários (Lei de Migração 13.445/17), que não dispõem dos mesmos recursos que migrantes voluntários.

Imigrar é uma experiência de alteridade, "uma viagem longa e difícil que começa (...) no 'sítio' do Outro" (KOLTAI, 2000, p. 20). O encontro com outra cultura questiona o quadro de referência do imigrante e seu sentimento de pertencimento. Isso afeta a sociedade de destino, que pode reconhecer no imigrante um ser alógeno e hostil, isto é, um não-ser, a partir do qual se justificam preconceitos e violências (JIBRIN, 2017).

Nas imigrações forçadas, a projeção do imigrante é marcada por incertezas. A ruptura súbita dificulta a elaboração do luto necessário à continuidade de si. Essa precariedade, somada aos eventos coercitivos, torna o sujeito vulnerável a traumas e ao sofrimento psíquico (MARTINS-BORGES, 2017). O desamparo e a angústia são vividos singularmente, mas suas expressões sintomáticas podem ser identificadas na cultura.

O desamparo, conceito central da psicanálise, refere-se à falta originária que constitui protótipo de configurações traumáticas geradoras de angústia (LACAN, 2005). A cultura oferece um quadro simbólico para dar sentido às experiências e significar conflitos (JIBRIN, 2017). O imigrante, deslocado de seu quadro cultural, tem sua identidade esmaecida.

Ao lado da cultura, o trabalho desempenha funções psíquicas centrais. Como "sujeito para o trabalho" (SAYAD, 1998), define-se um Outro cuja marca é a provisoriedade. O mesmo tipo de formação econômico-social que reduz o imigrante a uma força de trabalho provisória também define um tipo de conflito entre ser humano e trabalho que põe a saúde mental do trabalhador - o trabalho abstrato ou alienado. A atividade laboral veicula símbolos que questionam a vida passada e presente do sujeito, não sendo, portanto, neutra ao meio afetivo e influenciando relações interpessoais (DEJOURS, 2015).

Outrossim, a produção capitalista exige engajamento total da personalidade física e psíquica do trabalhador. O ritmo imposto fora do trabalho configura uma estratégia para reprimir comportamentos espontâneos que possam afetar negativamente a produtividade. As formas de organizar o tempo e condicionar o comportamento "formam uma verdadeira síndrome psicopatológica que o operário (...) se vê obrigado a reforçar (...) A injustiça quer que, no fim, o próprio operário torne-se artesão de seu sofrimento" (DEJOURS, 2015, p. 59).

O tema deste estudo são as relações entre imigração, trabalho e sofrimento psíquico a partir das memórias de imigrantes venezuelanos nas agroindústrias da carne do Oeste de Santa Catarina. A justificativa acadêmica reside na carência de trabalhos que articulem a experiência de imigração e trabalho na configuração do sofrimento psíquico. A magnitude da crise migratória venezuelana e a atuação das agroindústrias no direcionamento dos fluxos migratórios também conferem ao estudo relevância política e social. 

Após 2016, a migração venezuelana tornou-se o principal fluxo para o Brasil, com mais de 510.000 venezuelanos em novembro de 2023 (R4V, 2024). A Operação Acolhida (2018), com interiorização como pilar, mobilizou mais de 144 mil venezuelanos. Mais da metade foi para o Sul, e 32 mil para Santa Catarina, com Chapecó liderando interiorizações (5.921).

Frigoríficos atuam no direcionamento via Vaga de Emprego Sinalizada (VES). O Oeste de Santa Catarina é o principal destino, com 62% da força de trabalho venezuelana em linhas de corte. Imigrantes compõem ~20% da força de trabalho regional.

A violência dos processos de trabalho nas agroindústrias é conhecida. A reestruturação produtiva de final dos anos 1980 intensificou o trabalho, levou a estagnação salarial e ao aumento de acidentes e doenças ocupacionais, entre as quais depressão, ansiedade e alcoolismo crônico (SARDÁ; KUPEK; CRUZ, 2009).

O objetivo desta pesquisa é investigar os impactos do trabalho na saúde mental de imigrantes venezuelanos, desconstruindo a lógica diagnóstica da psicopatologia do trabalho pela psicanálise e a psicodinâmica de Dejours.

O problema central é: qual o lugar do trabalho na constituição da experiência de imigração e do sofrimento psíquico de imigrantes venezuelanos nos frigoríficos do Oeste de Santa Catarina? A partir dele, desdobram-se outras questões: como elaboram o sofrimento? Quais suas estratégias de defesa? Como percebem a projeção de si pelo trabalho?

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Publicado

24-11-2025