ENTRE O QUADRO E A MOLDURA

A ALIMENTAÇÃO COMO REGIME DE DESIGUALDADE

  • Rocheli Koralewski Universidade Federal da Fronteira Sul
Palavras-chave: alimentação, marcadores sociais da diferença, desigualdades

Resumo

Duas mulheres jovens tomaram assento na mesa ao lado. Vestiam roupas esportivas, tinham
corpos magros, eram brancas e artificialmente loiras. Seguindo seu trabalho, a garçonete
perguntou o que desejavam consumir. “Filé ou frango?” “Filé”. Enquanto a trabalhadora acionava
a discreta esteira de produção que transforma ingredientes em alimento-servido-em-pratos-elegantes, as mulheres seguiram o fio do diálogo estirado pelo cardápio. Ao passo que o alimento delas era preparado, as palavras que transbordavam aquela mesa já ofereciam um aperitivo.
“Preciso bater os macros de hoje, com esse filé bato as proteínas”, comunicava uma à medida
que a outra descrevia quais tipos de produtos proteicos consome diariamente. Na busca pela massa
muscular, o linguajar acadêmico das mulheres do café não faz parte da academia que baseia esse
trabalho, todavia oferece pontos de conexão. De antemão, o reducionismo de macronutrientes,
responsável por oferecer um enfoque restrito ao nutriente, desconsiderando o alimento em si e os
elementos sociais da alimentação. Logo, os marcadores sociais que, de forma notória, demarcam
seus lugares enquanto pessoas brancas, do sexo feminino e que possuem recursos financeiros para
consumir uma refeição com filé em um café no centro da cidade. Ao pautar o alimento, é
importante considerar os fatos que inauguraram a terceira década do século XXI, percebendo que
a fome permanece enquanto um dos componentes estruturantes da sociedade brasileira. Na
qualidade de pesquisadora, o ato corriqueiro de estranhamento se insere como estopim da
pesquisa, tendo em vista que o consumo alimentar não é banalidade - sobretudo de proteína
animal. Com o retorno ao mapa da fome, os hábitos alimentares se modificaram. Produtos
ultraprocessados, cada vez mais baratos, tomam o lugar dos alimentos frescos e orgânicos. E,
nesse sentido, o país se coloca cada vez mais distante dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS/SDG), sobretudo em relação ao ODS 2, que tem 2030 como o ano para o
estabelecimento da fome zero e a melhoria da nutrição. Assim sendo, alimentação oferece um
potencial grandioso enquanto objeto de estudo à reflexão das ciências humanas. A partir do
estranhamento da realidade e dos dados empíricos apresentados pelos relatórios “O Estado da
Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)” (2021) e o “II Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil” (2022), o intuito desse
trabalho é analisar como a desigualdade no consumo de alimentos se relaciona com os marcadores
sociais de classe, gênero e raça. Para tal fim, o percurso metodológico dessa pesquisa, que tem
caráter quali-quantitativo, foi iniciado por uma revisão bibliográfica aproximando estudos da
história da alimentação com referências sobre a articulação da diferença e da desigualdade, a
partir de Avtar Brah e Sérgio Costa. O debate teórico foi sustentado pelos elementos quantitativos
presentes nos relatórios. Ao compreender as distinções entre comida e alimento pela alegoria do
quadro-moldura de Da Matta (1986), percebe-se que as diferenças são utilizadas para manter a
vigência do atual sistema de produção, o qual se alimenta dos regimes de desigualdade.

Publicado
25-10-2023