Ontem, hoje e amanhã – “Portugal do sempre”

usos públicos e políticos do passado em “O depoimento”, de Marcello Caetano

Palavras-chave: Brasil-Portugal, ditadura, Estado Novo, Revolução dos Cravos, memória

Resumo

No dia 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos derrubou o Estado Novo português e depôs o então ditador Marcello Caetano – o qual, já naquele ano, recebeu a concessão de um asilo territorial da ditadura civil-militar brasileira. Diante desse cenário, este trabalho problematiza dois aspectos relacionados à estadia do sucessor de Salazar no Rio de Janeiro: 1) o imbróglio em torno da publicação de um livro com as “memórias do ex-primeiro-ministro” no Brasil, pela Editora Record; 2) os usos públicos e políticos do passado contidos no referido texto. Conforme documentação pesquisada no acervo do Arquivo Nacional (processo Dicom/Ministério da Justiça nº 63.612-24/09/1974), a notícia da edição da obra despertou a atenção do governo brasileiro em relação a “uma violação das normas que regem o asilo territorial” que poderia “melindrar as autoridades portuguesas e [...] afetar as relações luso-brasileiras”. Ao ser entrevistado pela Polícia Federal sobre a questão, Caetano afirmou que “em face da tradicional austeridade do Brasil no combate ao comunismo no campo interno, não entende a conduta [...] no campo externo, com os atuais dirigentes portugueses”. No desfecho processual, foi autorizada a publicação do livro “Depoimento” (mediante suposto “entendimento” com o governo português). A partir da leitura das 255 páginas que constituem a obra, percebe-se que Marcello abrange os seguintes temas, expressos nos capítulos: “I – O ultramar”; “II – Política interna”; “III – A economia e as finanças”; “IV – O Estado social”; “V – A reforma do ensino”; “VI – As forças armadas” e “VII – A crise” – com foco nas décadas de 60 e 70. Com base em referenciais teórico-metodológicos atrelados ao estudo dos usos públicos e políticos do passado, pode-se verificar a intencionalidade de Caetano em distanciar-se da historiografia profissional de que era contemporâneo – tendo em vista a declaração de estar certo de que apenas os “historiadores desapaixonados do futuro hão de fazer justiça [...] à acção do Dr. Salazar [e] ao esforço que desenvolvi no governo”. O asilado sustenta ainda que busca exprimir tão somente o “testemunho de quem apenas tivesse presenciado os fatos”, isto é, “simplesmente me detive em apenas relatar. Meu trabalho foi assim como uma higiene mental”. É viável argumentar que essa pretensão de imparcialidade – da qual os críticos do Estado Novo, para Marcello, seriam desprovidos –, atua enquanto alusão a um argumento de autoridade para justificar obra fundada em uma reivindicação corporificada do autoritarismo em Portugal, bem como postula permanência “eterna” da “Pátria portuguesa”, assimilada como vinculada ao seu governo – aquém das lutas de “facções”. Por meio desses elementos, depreende-se que Marcello Caetano se aproveita pública e politicamente do passado português mediante depoimento militante calcado na apreensão do regime ditatorial como positivo e vítima de ataques injustificados. Em última instância, percebe-se que o livro não compreende apenas um relato, mas sim uma defesa elogiosa a si próprio.

Publicado
25-10-2023