O CUIDADO A PESSOA EM CRISE NOS CAPS COMO DESAFIO ESTRATÉGICO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Resumo
O processo e movimento de Reforma Psiquiátrica (RP) brasileira trouxe muitos avanços para a o campo da saúde mental com mudanças significativas na reestruturação da assistência às pessoas em sofrimento psíquico, visando ampliar a concepção de cuidado para uma rede de serviços e dispositivos territoriais, abrangendo uma perspectiva de cuidado em liberdade. Nesse contexto, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se situam como dispositivos territoriais estratégicos para a RP brasileira pois possibilitam produzir processos de mudança no campo de saberes e práticas em saúde mental a partir de sua proposta constitutiva que tem como norteadores o respeito aos direitos humanos, a ética e a corresponsabilidade. Sabemos, no entanto, que na mesma medida dessas mudanças surgiram também desafios para a efetivação de um cuidado em liberdade, entre eles, o cuidado à pessoa em crise, que tem sido considerado uma das questões mais importantes e estratégicas para o processo de RP brasileira, uma vez que a lógica manicomial nessas situações ainda continua sendo um imperativo das práticas, mesmo nos serviços que se propõem antimanicomiais. Considerando esses aspectos apresentamos neste trabalho uma reflexão sobre a Atenção à pessoa em crise nos CAPS. Trata-se de um relato de experiência realizado a partir das vivências e percepções como enfermeira-residente de um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva em um CAPS II da Região Sul do Brasil, no período de seis meses e como enfermeira, trabalhadora de um CAPS III, na mesma região durante oito meses. Nestas experiências, me percebia em uma relação complexa e contraditória entre o que defendia como cuidado psicossocial e o que conseguia realizar na prática. Nas abordagens à pessoa em crise essas contradições tornavam-se ainda mais evidentes, pois na medida em que se estabelecia uma relação de respeito à história e à vida do outro legitimando a sua capacidade de escolha também haviam processos de captura de uma perspectiva de cuidado psicossocial pela permanência da hegemonia manicomial. Não raras foram as vezes que a lógica da crise como emergência psiquiátrica definiu e justificou relações de cuidado hierarquizadas, na qual a voz e o corpo da pessoa em crise passavam a ser deslegitimados em prol de abordagens que visavam a supressão daquela situação como única via possível. Nessa perspectiva considera-se o desafio estratégico do cuidado à pessoa em crise nos CAPS para o campo da Atenção Psicossocial, pois esses serviços comunitários são espaços potentes e legítimos para o processo de mudanças paradigmáticas das práticas de cuidado. Entende-se, portanto, que são nos movimentos do contraditório entre proposta da Atenção Psicossocial e prática, a intenção e a ação desses dispositivos, que habitam as possibilidades de superar as cristalizações e o lugar instituído do manicômio, apontando para a necessidade desses serviços e seus atores estarem constantemente repensando e reinventando o seu fazer a partir de uma postura ético-política de trabalho que tenha como norte um cuidado que se faz ‘junto com’, possibilitando inscrever a vivência da crise e da loucura no âmbito da vida e não mais da doença.