A Governamentalidade e a (Re)configuração do Discurso sobre o Aluno Migrante

Autores

  • Natal Canalle Junior UFFS/ SEDUC
  • Grazielli Alves Almeida Canalle
  • Ângela Derlise Stübe

Resumo

Introdução

O presente estudo analisa o discurso governamental sobre o aluno migrante no contexto da educação básica no Estado de Santa Catarina, a partir da análise das Portarias SED N° 3030/2016 e SED N° 2083/2023. Ambas tratam das condições de matrícula dos alunos migrantes nas escolas estaduais, mas apresentam mudanças significativas no tratamento dessas questões, principalmente em relação à designação e categorização dos sujeitos migrantes. Para compreender essas transformações, o trabalho se fundamenta na teoria de governamentalidade de Michel Foucault, que entende o poder como uma prática complexa e estratégica exercida pelo Estado por meio de diferentes aparatos e instituições, com o objetivo de organizar a sociedade. A análise das portarias revela como o Estado utiliza o discurso e as instituições para regular a presença e a permanência de alunos migrantes nas escolas públicas, além de como essas designações influenciam o processo educacional e a inclusão desses sujeitos.

 

1. O Conceito de Governamentalidade e a Arte de Governar

De acordo com Foucault (2004), a governamentalidade refere-se à maneira como o poder é exercido pelo Estado através de uma série de táticas e estratégias que moldam as relações sociais, culturais e políticas. No contexto das portarias da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, a governamentalidade se expressa na forma como o Estado regula a matrícula de alunos migrantes e estabelece normas para a sua inserção no sistema educacional. O conceito de governamentalidade envolve o uso de instrumentos legais, como as portarias, para garantir a ordem e a regulação da sociedade, e, neste caso específico, a integração dos alunos migrantes ao sistema de ensino.

 

2. A Transformação na Designação dos Alunos Migrantes

Na Portaria SED N° 3030/2016, o aluno migrante é tratado exclusivamente como estrangeiro, uma categoria que não contempla as diversas realidades migratórias e as diferentes formas de migração. Essa visão reducionista do aluno migrante é revisada na Portaria SED N° 2083/2023, que amplia as designações e passa a considerar o aluno como migrante, refugiado, apátrida, solicitante de refúgio ou aquele que tenha realizado estudos no exterior. Essa mudança de nomenclatura, embora busque a inclusão, também tem o efeito de criar um senso comum que uniformiza as experiências de migração, desconsiderando as complexas questões envolvidas, como as origens dos alunos, suas histórias pessoais e os diferentes processos migratórios.

De acordo com Lara, Da Rosa e Tauzin-Castellanos (2021), a categoria migrante neutraliza a oposição entre emigrante (aquele que deixa o país) e imigrante (aquele que chega a outro país). Essa neutralização sugere uma nova forma de se entender o movimento migratório, mas ao mesmo tempo apaga as singularidades das trajetórias de cada indivíduo. Essa tentativa de unificação, no entanto, pode resultar na perda de nuances importantes sobre a diversidade de experiências migratórias, o que gera o risco de homogeneização das realidades desses alunos.

 

3. A Memória Discursiva e o Impacto das Designações

A análise também aponta para o conceito de memória discursiva, que, conforme Da Rosa (2018), trata das designações linguísticas como construções históricas que, ao longo do tempo, são ressignificadas e atualizadas. Essa ideia é importante para compreender a mudança na designação do aluno migrante, pois ela reflete não apenas uma adaptação à nova realidade migratória, mas também uma continuidade de um discurso institucional que se constrói sobre a memória do passado. No entanto, a mudança da palavra “estrangeiro” para uma gama mais ampla de termos relacionados à migração pode ser vista como uma tentativa de estabilizar um único significado para esses sujeitos, ignorando as especificidades que cada um carrega consigo. Como argumenta Guimarães (2014), a designação não é apenas uma forma de classificação objetiva, mas está sempre atravessada por uma memória discursiva que recupera e ressignifica as histórias e contextos de cada sujeito.

 

4. O Impacto da Língua Portuguesa e a Ilusão do Monolinguismo

Outro aspecto importante na análise do discurso governamental é a questão da língua portuguesa. A Portaria SED N° 2083/2023 estabelece que os alunos migrantes que não dominam o português devem ser reclassificados de acordo com sua idade e competência linguística, e a escola deve elaborar planos pedagógicos para a aquisição do idioma. Essa imposição de uma língua única, como se o português fosse a única língua legítima para a integração dos alunos migrantes, reflete um monolinguismo que apaga as diferentes variações linguísticas presentes no Brasil. Como argumentam Mattos e Stübe (2021), o monolinguismo é uma ilusão totalizante que busca uma falsa estabilidade, tratando a língua portuguesa como a única que pode definir a identidade do sujeito, quando, na verdade, o Brasil é um país multilíngue e multicultural.

Além disso, o discurso de que a língua portuguesa é essencial para o sucesso educacional dos alunos migrantes também pode ser entendido como uma estratégia de poder do Estado, que impõe a sua língua como linguagem de integração. A norma que exige que os alunos migrantes aprendam o português para garantir sua integração escolar coloca o aluno migrante em uma posição subalterna, sem reconhecer as várias línguas e culturas que ele traz consigo. Esse processo de exclusão linguística, embora em nome da inclusão, resulta na marginalização das línguas e culturas não reconhecidas pelo Estado.

 

Considerações Finais

A partir da análise das Portarias SED N° 3030/2016 e SED N° 2083/2023, podemos concluir que houve uma tentativa do Estado em atualizar o tratamento dado aos alunos migrantes, utilizando novas designações que buscam abarcar uma maior diversidade de experiências migratórias. No entanto, essas mudanças também evidenciam um processo de homogeneização que ignora as especificidades de cada história migratória. A designação do aluno como migrante, refugiado, apátrida, entre outras, visa construir uma identidade comum, mas ao mesmo tempo apaga a diversidade real das experiências desses sujeitos.

O discurso sobre a língua portuguesa também é um ponto central nesse processo, pois a imposição de uma língua única revela o desejo de estabilizar a identidade do sujeito migrante, mas também ignora as outras línguas e culturas presentes no Brasil. A análise de Foucault sobre o poder e a governamentalidade nos ajuda a entender como o Estado, por meio de suas políticas educacionais, exerce poder sobre os alunos migrantes, ao mesmo tempo em que esses sujeitos também negociam e contestam as normas impostas. Em um país pluricultural e multilíngue como o Brasil, é fundamental que as políticas públicas de educação reconheçam a diversidade e o potencial enriquecedor que os alunos migrantes trazem para as escolas.

Assim, nosso estudo revela que, embora a atualização das portarias tenha trazido avanços, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir a verdadeira inclusão dos alunos migrantes, respeitando suas histórias, identidades e diversidade linguística.

 

Referências

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

GUIMARÃES, Silvia. A política das designações: governamentalidade e categorias sociais. São Paulo: Editora X, 2014.

LARA, Fábio; DA ROSA, Sergio; TAUZIN-CASTELLANOS, Claudia. A migração e seus desafios: uma análise das categorias migrantes no Brasil. Florianópolis: Editora Y, 2021.

MATTOS, R.; STÜBE, F. Língua e identidade: o monolinguismo e suas implicações educacionais. Rio de Janeiro: Editora Z, 2021.

DA ROSA, Sergio. Memória discursiva e categorias linguísticas. Porto Alegre: Editora W, 2018.

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Publicado

30-05-2025

Edição

Seção

Currículo e Políticas Educacionais