LÍNGUA PORTUGUESA PARA ALUNOS MIGRANTES: O DISCURSO SOBRE ACOLHIMENTO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESTADO SANTA CATARINA 

Autores

  • Ângela Derlise Stübe
  • Grazielli Alves Almeida Canalle UFFS

Resumo

 

LÍNGUA PORTUGUESA PARA ALUNOS MIGRANTES: O DISCURSO SOBRE 

ACOLHIMENTO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESTADO SANTA CATARINA 



Grazielli Alves Almeida Canalle

Ângela Derlise Stübe

 

INTRODUÇÃO

 

Este trabalho tem como objetivo principal analisar os efeitos de sentido do discurso sobre acolhimento que constituem a discursividade das políticas públicas voltadas para o aluno migrante no Estado de Santa Catarina. A pesquisa busca compreender como a memória discursiva constitui e ressoa do discurso oficial das políticas públicas voltadas para o aluno migrante. Nosso estudo é sustentado pelos fundamentos teóricos da análise de discurso materialista, a partir da perspectiva teórico-metodológica, conforme os estudos de Pêcheux e Orlandi. A Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos (Orlandi, 2013). 

O corpus da nossa pesquisa é composto por três documentos institucionais: (1) a Lei Estadual nº 18.018/2020, que institui a Política Estadual para a População Migrante em Santa Catarina; (2) a Portaria SED nº 2083/2023, que regulamenta a matrícula e o aproveitamento de estudos de alunos migrantes na Rede Estadual de Ensino; e (3) o Projeto Pedagógico do Programa de Acolhimento a Refugiados e Estrangeiros – PARE/SC, que visa à acolhida humanizada de estudantes migrantes e refugiados. 

A inquietação que motivou esta pesquisa surgiu da questão da língua portuguesa para os alunos migrantes nos documentos institucionais. Entendemos que a partir da discursividade das Políticas Públicas efeito(s) de sentido sobre esta língua são produzidos, ou seja, a língua portuguesa passa a significar língua de acolhimento, e é esse funcionamento discursivo que nos interessa analisar. Esta pesquisa, ainda em andamento, conta com financiamento do CNPq.

 

1 METODOLOGIA

 

Para desenvolvermos nosso estudo, adotamos a metodologia do recorte, por meio do qual recortamos sequências discursivas, as quais organizamos em recortes discursivos. Dessa maneira, para nós, o recorte já se constituiu como um gesto de interpretação (Orlandi, 2012). Os recortes discursivos foram organizados a partir das regularidades entre língua portuguesa, aluno migrante e discurso(s) sobre acolhimento que perpassam esses documentos. 

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO E/OU DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE

 

Nosso estudo é sustentado pelos fundamentos teóricos da análise do Discurso materialista, que entende que o objeto discurso se constitui em um sentido próprio, pensando a materialidade discursiva que não é apenas um “reflexo” da mistura dos três campos, a linguística, a psicanálise e o materialismo histórico. (ORLANDI, 2006, p. 13). Com base nesses fundamentos, é possível compreender como a constituição do sujeito no discurso é atravessada por elementos ideológicos e inconscientes, o que nos leva ao aporte da teoria psicanalítica.

Sendo assim, o contexto teórico da AD ocorre na teoria psicanalítica do sujeito, pois, o sujeito é afetado pelo inconsciente passando a identificar-se com uma ideologia, uma formação discursiva FD, e isso resulta na ilusão de que o mesmo tem, de estar na origem do seu dizer. E o seu dizer, seu discurso, ocorre na sua memória discursiva, emerge do interdiscurso, exteriorizando o que lhe era interno, tal fenômeno é conhecido como condições de produção. 

Nesse sentido, os estudos de Michel Pêcheux, especialmente a partir da leitura de Lacan, são fundamentais para aprofundarmos a compreensão desse processo de assujeitamento. Na esteira dos estudos de Pêcheux (a partir de Lacan), entendemos que através da ideologia somos interpelados em sujeitos, somos/estamos sujeitos a... De acordo com Pêcheux, “os indivíduos são “interpelados” em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1997, p. 161). Somos sujeitos determinados historicamente, sendo assim, somos construídos na relação com o outro, com o exterior, com aquilo que nos representa. Por sermos históricos, nos identificamos com uma formação discursiva, formação essa construída e produzida ideologicamente nas relações sociais. E esse assujeitamento, conforme Orlandi, é a possibilidade de ser sujeito. Essa é a contradição: sujeito à (língua) para ser sujeito de (o que diz). Portanto, se o assujeitamento não ocorre, não há nem sentido nem sujeito. 

A partir dessa concepção de sujeito interpelado e constituído ideologicamente, passamos a compreender o texto como espaço de inscrição dessa discursividade. Para Indursky (2006), a partir da proposta de Pêcheux, o texto constitui discurso, sua materialidade. Para Pêcheux, discurso é efeito de sentido entre locutores (Pêcheux apud Orlandi, 2006), por consequência, ocorre na relação entre sujeitos e circunstâncias afetadas por suas memórias discursivas. O texto é visto como uma unidade de análise, afetado pelas condições de sua produção. Ao levá-las em conta, faz-se necessário ultrapassar os elementos internos presentes no mesmo, seus limites, mobilizar a exterioridade, convocar o contexto que não é situacional, mas sócio-histórico. E é no campo da AD que a relação da língua é trabalhada com a sua exterioridade; ela procura ver a discursividade presente no texto, ou seja, como o seu funcionamento produz sentido.

Com base nesse arcabouço teórico, voltamo-nos agora à análise do discurso das políticas públicas, buscando compreender como os efeitos de sentido se manifestam nas práticas de acolhimento ao aluno migrante no Estado de Santa Catarina. Desta forma, para analisarmos como os efeitos de sentido do discurso sobre acolhimento que constitui a discursividade das políticas públicas voltadas para o aluno migrante no Estado de Santa Catarina. Procuramos compreender como a memória discursiva constitui e ressoa do discurso oficial das políticas públicas voltadas para o aluno migrante. 

Desde 2016, a SED já havia publicado a Portaria SED nº 3030, que orientava como matricular e como atender pedagogicamente os estudantes estrangeiros e refugiados no estado de Santa Catarina, mas ainda faltavam políticas públicas que amparassem legalmente esse campo, que ainda seria mais explorado em nível nacional. Em 13 de novembro de 2020 o Conselho Nacional de Educação - CNE aprovou a Resolução nº 1 que dispunha sobre o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro, com isso, surgiu o Programa de Acolhimento a Refugiados e Estrangeiros - PARE/SC na rede estadual de ensino de Santa Catarina. 

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

 

Com base nesse arcabouço teórico, voltamo-nos agora à análise das políticas públicas voltadas ao aluno migrante em Santa Catarina, com ênfase no Programa PARE/SC. Para compreendermos e analisarmos a formulação discursiva sobre Língua Portuguesa como língua de acolhimento, faz-se necessário explicar brevemente sobre o Projeto Pedagógico do Programa PARE/SC, criado em 2021, que constitui nosso arquivo. No início, o programa chamava-se Programa de Acolhimento a Refugiados e Estrangeiros, por isso a sigla PARE. No ano seguinte, passou a ser chamado de Programa de Acolhimento ao Migrante e Refugiado - PARE/SC. Entendemos que a mudança do nome do programa se deu devido a palavra Estrangeiro não dar conta da complexidade do fenômeno de imigração. De acordo com (FIALA, 2018) in Lara, G.M.P; Da Rosa, M. ;Tauzin -Castelhanos, I. (2021),  migrante é

 

um indivíduo que deixou seu país de origem por vontade própria ou não, tornando-se um estrangeiro no país de chegada. Essa caracterização aponta para a dicotomia emigrante (tomado do ponto de vista daquele que deixa seu país de origem para viver em outro lugar) vs. imigrante (tomado do ponto de vista daquele que entra num país para nele viver), ou seja, o emigrante (no país de partida) torna-se o imigrante (no país de chegada). Essa dicotomia desaparece em migrante, pela neutralização da oposição espacial lá/aqui.

 

Ou seja, enquanto a palavra entrangeiro refere-se ao indivíduo que deixou seu país de origem e foi para outro,a palavra migrante parece estar mais relacionada ao processo migratório, de movimento, do que de partida ou de chegada, o que acaba neutralizando as diferenças entre imigrante e emigrante, fazendo com que todos os estrangeiros sejam representados como indivíduos em movimento.

Ao olharmos discursivamente para esse documento, podemos entender que o PARE, assim como na placa de trânsito, estava sinalizando para algo que surgia no meio do caminho, o fenômeno migratório que vinha aumentando no estado de Santa Catarina e, por conseguinte, movimentando a educação da Rede Estadual de Ensino.

 No entanto, os sentidos para PARE, sejam nas leis do trânsito, ou no documento não são os mesmos. PARE no trânsito significa parar, para dar passagem, no documento, PARE parece funcionar como avançar, para dar condições de se movimentar, pois, o programa pretende ajudar os alunos migrantes a se movimentar, a ter autonomia.

Em 2023, a Portaria SED nº 3030 foi revogada, dando lugar a Portaria SED nº 2083/2023, que, além de tratar de todos os itens que a portaria revogada anteriormente tratava, trouxe em sua discursividade modos diferentes de significar o aluno que antes era nomeado como estrangeiro, e, a partir de então passou a ser tratado como aluno migrante, refugiado, apátrida, solicitante de refúgio ou que tenha realizado estudos no exterior. Compreendemos que houve uma atualização do dizer, um modo outro de significar o lugar desse sujeito migrante no discurso, possivelmente, isso ocorreu devido às necessidades postas por esse fenômeno migratório.

 

 

CONCLUSÃO

 

Nosso problema de pesquisa investiga os efeitos de sentido produzidos no discurso sobre a língua portuguesa como língua de acolhimento nas políticas públicas voltadas para o aluno imigrante/refugiado na rede estadual de ensino de Santa Catarina. Essa questão nos conduziu a uma análise do conceito de discurso na Análise do Discurso (AD). Ao considerar o objeto discurso, que se constitui em um sentido próprio, e refletir sobre sua materialidade discursiva, pudemos entender os efeitos de sentido relacionados ao uso da língua portuguesa como ferramenta de acolhimento nos documentos das políticas públicas do Estado.

Ao desenvolver nosso gesto interpretativo a partir das regularidades, concluímos que o corpus de nossa pesquisa filia-se à memória discursiva de como a língua portuguesa foi historicamente constituindo-se enquanto língua oficial, para mais tarde constituir-se como língua nacional no Brasil. 

Diante disso, a partir do nosso gesto interpretativo, compreendemos que as sequências discursivas podem revelar que memória de língua está em funcionamento nesse discurso. Por isso, entendemos que há uma tentativa de promover uma acolhida humanizada, com base no ensino da língua portuguesa, porém, como a língua não é transparente, é porosa, surgem sentidos outros para “acolher”. A partir dos estudos e análise dessas sequências discursivas, dos sentidos pré-existentes, dos deslizes de sentidos, do que irrompe o dizer, compreendemos como o (des)acolhimento está em funcionamento no discurso oficial, produzindo desta forma sentido(s) para uma política de língua no Estado de Santa Catarina. 

 

REFERÊNCIAS 

 

ANTUNES, I. Gramática Contextualizada: limpando o pó das ideias simples. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

ACHARD, P. (et. al) Papel da memória. Campinas : Pontes, 2015.

INDURSKY, Freda. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In:_______ ORLANDI, Eni Pulcinelli. Introdução às ciências da linguagem Discurso e Textualidade. Suzy Lagazzi-Rodrigues e Eni P. Orlandi (orgs.) - Pontes Editores. 2006: Campinas, SP.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso e Interpretação. In:_______ ORLANDI, Eni P. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. 3ª Edição. Campinas, SP. Pontes Editores. 2008.

ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 10ª Edição, Campinas, SP – Pontes Editores, 2012.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso. In:_______ ORLANDI, Eni P. Introdução às ciências da linguagem - Discurso e Textualidade. Suzy Lagazzi-Rodrigues e Eni P. Orlandi (orgs.) - Pontes Editores. 2006: Campinas, SP.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. 9ª Edição. São Paulo, SP. Editora Cortez, 2012.

ORLANDI, Eni P. Discurso e Texto: Formulação e Circulação dos Sentidos. 4ª Edição. Campinas, SP. Pontes Editores. 2012.

PAYER, Maria Onice. MEMÓRIA DA LÍNGUA. IMIGRAÇÃO E NACIONALIDADE. Editora da Unicamp. 1999.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução: Eni Pulcinelli Orlandi [et al]. 3ª Edição. Campinas, SP. Editora da Unicamp. 1997.

SANTA CATARINA. PROGRAMA DE  ACOLHIMENTO A REFUGIADOS E ESTRANGEIROS – PARE/SC. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina. Florianópolis, 2021.

________. Parecer CNE/CEB nº 1/2020.

________. Lei Estadual nº 18.018, de 13 de outubro de 2020.

________. Portaria SED nº 3030/2016. 

________. Portaria SED nº 2083/2023.

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Publicado

30-05-2025

Edição

Seção

Currículo e Políticas Educacionais