MÚSICA E RESISTÊNCIA:
UM CURSO MULTICULTURAL DE ARGUMENTAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA
Resumo
INTRODUÇÃO
Frente à instabilidade política vivida nos últimos anos, o ensino da Língua Espanhola (LE) tem enfrentado uma constante e preocupante falta de incentivo nas escolas à medida em que teve o seu espaço na grade curricular educacional brasileira reduzida, especialmente após a aprovação da MP 746/2016, a qual retirou a obrigatoriedade da oferta da LE nas escolas do país. Diante do fato de que fazemos fronteira, majoritariamente, com países hispano falantes, encontramo-nos com a dura tarefa de criar condições, em meio às adversidades, de estimular e possibilitar o estudo de uma língua estrangeira, neste caso, o espanhol, com o intuito de que a comunicação em LE não se mostre como um desafio para aqueles cuja primeira língua seja a Língua Portuguesa. Em síntese, partiu-se da ótica de que em uma viagem a outro país não se utilizam apenas cumprimentos e frases prontas em uma comunicação, pois, em uma viagem, problemas são enfrentados, dificuldades, malentendidos, e, por vezes é necessário ir além de uma proposta de conversação de nível básico, possibilitando ao falante ter segurança na oralidade em LE.
A partir do Edital nº 71/GR/UFFS/2022, que contemplava projetos de extensões, surgiram os primeiros esboços daquilo que viria a tornar-se o Curso de Argumentação em Língua Espanhola: Música e Resistência. Com uma proposta voltada para o ensino crítico de LE, voltou-se não apenas para aspectos linguísticos de países hispano-falantes, mas também o envolvimento político da LE no que diz respeito às ditaduras militares que foram enfrentadas por vários países ao longo do século XX.
Esse projeto ocorreu no Centro de Línguas da UFFS, no campus Cerro Largo, durante os meses de julho e agosto de 2022, e posteriormente, entre abril e julho de 2023. As aulas semanais foram oferecidas a estudantes da universidade e da comunidade externa, visando aprimorar a argumentação oral em espanhol como língua estrangeira. O curso explorou situações além do conteúdo escolar tradicional, utilizando músicas de compositores comprometidos com o combate às ditaduras na América Latina, proporcionando uma visão alternativa dos hispano falantes vizinhos.
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1 METODOLOGIA
Para o desenvolvimento dos materiais didáticos, trabalhou-se com o Enfoque Por Tarefas (EPT) e dividindo as unidades em introdução, pré-leitura, leitura e pós-leitura, atentando a quais aspectos da comunicação seriam abordados no curso. O EPT busca promover a aprendizagem de uma língua a partir de situações reais de uso de tal língua, partindo para outro viés que não aquele em que o processo vá se dar exclusivamente pela codificação e decodificação das mensagens, assimilação das regras e estruturas de uma língua. Com o EPT se vai das atividades para a língua, isto é, durante o input linguístico, o estudante realizará a interpretação dos sentidos da mensagem, para então partir ao output, o qual será feito de acordo com o proposto pelo professor para tal situação (ENFOQUE…, c1997-2023).
Como metodologia de aula, optou-se pela aplicação de uma metodologia chamada Open Spaces for Dialogue and Enquiry (OSDE), que baseia-se no engendramento de um espaço seguro para o diálogo e investigação, onde os alunos sentem-se confortáveis para expressar-se e fazer questionamentos, sem sentirem-se envergonhados ou "pouco inteligentes" (ANDREOTTI, BARKER, NEWELL-JONES, 2007, p. 4). Nesta metodologia, três princípios são importantíssimos, os quais dizem que (1) todo conhecimento é válido e legítimo, criado em diferentes contextos. Ao mesmo tempo, (2) todo conhecimento também é parcial e incompleto, podendo sempre ser acrescido. E por fim, (3) todo conhecimento pode ser questionado, não com o intuito de deslegitimar ou criticar tal conhecimento, mas sim para aguçar e/ou ampliar os entendimentos acerca de um determinado assunto.
O desenvolvimento dos planos e dos materiais se deu com base no Design-Based Research (DBR), onde “o movimento metodológico engloba ciclos iterativos de design, desenvolvimento, implementação, análise e redesign, tendo como foco prioritário a criação de soluções inovadoras para os problemas/desafios da educação” (NOBRE; MARTIN-FERNANDES, 2021, p. 244). Os planos foram feitos no Google Docs, de modo que o processo de revisão e orientação acontecesse de modo mais fluido, e para a implementação dos planos de aula foi utilizado o Canva, onde os materiais foram organizados em forma de apostila. As canções escutadas durante as aulas eram disponibilizadas pós-aula em uma playlist no Spotify, de modo que os alunos pudessem escutá-las novamente, a fim de refinar percepções acerca de nuances históricas, sociais e políticas presentes nas músicas, visto os condições em que tais canções foram compostas. Em consonância com o DBR, a elaboração do curso foi pensada dentro do Ciclo Recursivo proposto por Leffa (2007), que consiste em quatro etapas: (1) Análise, (2) Desenvolvimento, (3) Implementação e (4) Avaliação.
Ao longo das aulas foram exploradas destrezas da comunicação oral, começando na primeira aula apresentando algumas breves diferenças fonético-fonológicas entre português e espanhol. Ao longo das aulas, os alunos foram fortemente incentivados a expressar-se em LE, abolindo da sala de aula qualquer ideia que não valorizasse o erro como uma parte extremamente importante do ensino e aprendizagem de uma Língua Estrangeira.
Ao mesmo passo, exploraram-se aspectos da compreensão e escuta em LE, a partir de entrevistas apresentadas em vídeos, sem legenda, para aguçar a percepção da importância de não apenas saber expressar-se, mas também de compreender o que nos é falado. A criticidade nos materiais também se fez fortemente presente, de maneira que não fossem impostas opiniões aos alunos, mas sim incentivou-se o ato de questionar tais aspectos explorados através das canções utilizadas em aula e as motivações por trás de suas respectivas composições.
O pressuposto do ensino crítico de espanhol é questionar o mundo social contemporâneo, trazer à baila uma discussão sobre como o paradigma monolíngue tem moldado nossa compreensão em relação ao conceito de língua, fazendo ressoar sua rigidez e sua fixidez na sala de aula de espanhol. (ZOLIN-VESZ; LIMA, 2017, p. 36)
É, portanto, imprescindível a presença do pensamento crítico no ensino e aprendizagem de LE, visto que aprender uma língua não conecta apenas a comunicação, mas também diferentes culturas, moldadas a partir de diferentes acontecimentos ao longo da história, e que ao longo dos anos fora subjugada à marginalização cinematográfica e/ou banalização imperialista.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Fundamentou-se tal curso sob perspectivas decolonialistas, isto é, afastando-se da ideia construída ao longo da história de desvalorizar e inferiorizar a América Latina, subjugando-nos à pseudo-dependência do que vem de fora. Para tanto, fez-se presente a voz de Manuel Ugarte (1923)
[...]la civilización, como la libertad, ha servido en todas las épocas para justificar los atentados. En nombre de la libertad impuso Napoleón su dominación a toda Europa, en nombre de la civilización Europa se repartió el Asia y el África[...]
Foi, portanto, inevitável a presença de uma ideologia de união latinoamericana, como maneira de contrastar com a imagem de que a América Latina é um mundo à parte, existente apenas e exclusivamente devido ao processo de colonialismo empregado no continente durante séculos.
Com isso em mente, nossas ideias foram cuidadosamente trabalhadas de forma a não impor conceitos de certo e errado, mas sim incentivar aos alunos a fazer-se valer do pensamento crítico para construir seus próprios entendimentos e opiniões a respeito de diversos tópicos abordados ao longo de nossos encontros, sendo capazes de argumentar em favor ou contra determinadas situações apresentadas, a fim de fomentar um maior desenvolvimento individual, social e, ao mesmo passo, da comunicação em LE.’
Tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que incorporem interesses políticos que tenham natureza emancipadora; isto é, utilizar formas de pedagogia que tratem os estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumentar em prol de um mundo qualitativamente melhor para todas as pessoas. Em parte, isto sugere que os intelectuais transformadores assumam seriamente a necessidade de dar aos estudantes voz ativa em suas experiências de aprendizagem. Também significa desenvolver uma linguagem crítica que esteja atenta aos problemas experimentados em nível da experiência cotidiana, particularmente enquanto relacionados com as experiências pedagógicas ligadas à prática em sala de aula. (GIROUX, 1997, p. 6)
Nesse sentido, o estudo de línguas sem a criticidade é experimentar o cotidiano mas não a realidade, e ainda assim sabemos que ainda hoje o ensino tradicional dispõe do espaço do ensino, tornando o aluno um indivíduo moldado por um ensino padronizado o qual não trabalha com as particularidades de cada ser. Portanto, o espaço do ensino crítico é onde o jovem terá a oportunidade de questionar a sociedade, porém a educação questionadora apenas será efetivamente construtiva, se ao mesmo tempo ela também ser propositiva, isto é, a "educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo" (FREIRE 1979, p.84).
Reconhecemos aí o verdadeiro sentido de ensinar: fazer com que o aluno seja capaz de interferir na busca de outros sentidos em relação ao que ficou tradicionalmente determinado e, dessa forma, se tornar agente de sua própria história. Significa deslocar-se de sua posição tradicional de aluno-ouvinte para a de aluno-autor, construtor de sua identidade. (MAGALHÃES; CYRANKA, 2014, p.673)
Isto é, se faz necessário que no decorrer de sua aprendizagem o aluno desenvolva o senso crítico. E como professores que já exercem ou não a profissão devemos instigá-los para que assim eles saibam se posicionar diante do que pensam e construam sua própria identidade baseada naquilo que realmente gostam e situações que verdadeiramente importam para os mesmos.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
A implementação do curso, dentro das perspectivas planejadas e expostas anteriormente, mostrou-se efetiva em sua proposta de trabalho com a argumentação, além de ajudá-los a explorar um pouco mais da cultura da América Latina através das canções escutadas e discutidas em aula.
Pós-aplicação, deu-se início a uma nova volta no Ciclo Recursivo anteriormente mencionado, onde todas as unidades produzidas para aplicação do curso serão analisadas e reavaliadas, com base nos feedbacks dos alunos, com o intuito de aprimorar o material, de modo que sua aplicação seja cada vez mais prazerosa em futuras oportunidades, através do CELUFFS, a fim de que tal curso abra portas para cada vez mais pessoas que buscam aprofundar-se na conversação em LE, dentro do campo da argumentação, na história da América Latina, bem como na sua cultura, tanto em um panorama histórico quanto social.
CONCLUSÃO
Desde sua concepção à sua implementação, aspectos linguísticos, históricos, culturais e sociais sempre estiveram no horizonte alcançável, servindo de motivação para que as experiências tidas em aula não fossem apenas encontros para cumprir a grade de Atividades Complementares Curriculares, mas sim encontros que gerassem curiosidade e vontade de, cada vez mais, aprofundar os conhecimentos que permeiam estas terras que há tantos séculos habitamos.
Findadas as duas oportunidades de implementação do curso, as perspectivas de evolução deste projeto ampliam seus horizontes, estando agora em um processo gestacional de aprimoramento de sua metodologia, a fim de entrelaçar o OSDE com o Storytelling, que é o ato de a partir da contação de histórias, engajar os alunos dentro dos objetivos delimitados no processo de ensino e aprendizagem, favorecendo uma maior imersão dos alunos na proposta levada pelo professor, com o intuito de que tal imersão histórica, social e cultural se dê de maneiras cada vez mais proveitosas, tanto na perspectiva docente quanto discente. Espera-se, portanto, que, a partir disso, se possa tecer, com base naquilo que já existe, um modo de ensino que capte não apenas a atenção, mas também o prazer pela aprendizagem em um processo mútuo de construção de pontes que nos levam em direção aos conhecimentos almejados dentro da sala de aula.
REFERÊNCIAS
ANDREOTTI, Vanessa; BARKER, Linda; NEWELL-JONES, Katy. Critical Literacy in Global Citizenship Education. Leicester, 2006. Disponível em <https://decolonialfuturesnet.files.wordpress.com/2020/05/pdresourcepack.pdf>. Acesso em: 20 de out. 2023.
ENFOQUE Por Tareas. Madrid, c1997-2023. Disponível em: https://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ele/diccio_ele/diccionario/enfoquetareas.htm
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
GIROUX, Henry A. Professores como Intelectuais Transformadores. In: GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, 157-164.
JESUS, Dánie Marcelo de; ZOLIN-VESZ, Fernando; CARBONIERI, Divanize (Orgs.). Perspectivas Críticas no Ensino de Línguas: Novos Sentidos Para a Escola. Campinas: Pontes Editores, 2017.
LEFFA, V. J. Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: LEFFA, Vilson J. (Org.). Produção de materiais de ensino: teoria e prática. 2 ed. Pelotas: EDUCAT, 2007, p. 15-41.MAGALHÃES, Tânia Guedes; CYRANKA, Lucia Furtado de Mendonça. Sujeito, educação e o trabalho com a Língua Portuguesa na escola básica. Estudos Rbep, Brasília, v. 95, n. 241, p. 662-675, set/dez. 2014.
NOBRE, Ana; MARTIN-FERNANDES, Isabelle. Abrir caminhos para a investigação em educação: design-based research. Práx. Educ., Vitória da Conquista , v. 17, n. 48, p. 234-254, out. 2021 . Disponível em <http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-26792021000500234&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 05 nov. 2023.
UGARTE, Manuel. La Pátria Grande. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2010. Disponível em: <https://elforjista.com/Manuel%20Ugarte%20-%20La%20Patria%20Grande.pdf> acesso em 20 de nov. 2023.