O LÍNGUA E OS DICIONÁRIOS REGIONALISTAS:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

  • Carline Kuhn Magalhães UFFS - Campus Cerro Largo
  • Caroline Mallmann Schneiders
Palavras-chave: Língua, Sujeito, Ideologia, Memória

Resumo

A LÍNGUA E OS DICIONÁRIOS REGIONALISTAS:

 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

 

Carline Kuhn Magalhães

Caroline Mallmann Schneiders

 

INTRODUÇÃO

 

A pesquisa que desenvolvemos caracteriza-se pela reflexão em torno de questões que perpassam a história da produção do conhecimento linguístico desenvolvido na região das missões do Rio Grande do Sul (RS). Para esse fim, nos interessou a observação de instrumentos linguísticos, mais especificamente, dicionários regionalistas, os quais colocam em circulação determinados sentidos da e sobre a língua, constituindo-se, portanto, como objetos linguístico-históricos. Tendo em vista que a região das missões é marcada, historicamente, pelo contexto das reduções jesuíticas, bem como por um contexto de imigração, sobretudo, a alemã, buscamos compreender como os dicionários regionalistas contribuem para a naturalização de determinados dizeres e sentidos, (re) produzindo representações/imaginários vinculados a discursos hegemônicos.

Nossa pesquisa teve como objetivo geral compreender os efeitos de sentido inscritos em instrumentos linguísticos em circulação na região das Missões/RS, explicitando a determinação histórica e ideológica do discurso da e sobre a língua que circula e materializa-se nesses dizeres. Para tanto, tomamos como objeto de análise dicionários regionalistas, os quais, enquanto objetos linguístico-históricos, contribuem para a naturalização de determinados dizeres e sentidos, (re) produzindo representações/imaginários vinculados a discursos hegemônicos. Assim, discutimos sobre o modo como as políticas de imposição cultural e linguística determinaram o discurso em análise, bem como os efeitos da história e da memória no discurso da e sobre a língua que circula e materializa-se nesses dizeres.

 

1 METODOLOGIA

 

Esta pesquisa vincula-se aos pressupostos teóricos da Análise de Discurso materialista articulada com a História das Ideias Linguísticas. Refletimos sobre como o dicionário é compreendido e mobilizamos conceitos, como: discurso, memória, historicidade e ideologia. Os dicionários escolhidos para objeto de análise são: Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul (1984), Dicionário Gaúcho Brasileiro (2003). Além do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009). A partir desses dicionários, centramos nossa discussão em torno dos verbetes: gaúcho, índio, Missões e missioneiro, a fim de lançar gestos de interpretação sobre tais dizeres.

Para o desenvolvimento da análise, partimos de um movimento pendular, visto que não trabalhamos com uma metodologia fechada, a mesma se constitui  ao longo da análise, percorrendo o caminho da análise para a teoria e da teoria para a análise. 

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO E/OU DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE

 

Conforme Nunes (2006, p. 11), entendemos o dicionário como “um dos lugares que sustentam as evidências dos sentidos, funcionando como um instrumento de estabilização de discursos” e, por conta disso, “é um material interessante para se observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas”. Segundo Auroux (2009), o dicionário é um instrumento linguístico assim como a gramática, os quais estão relacionados a normas e conjunturas que hegemonizaram um bem falar e bem escrever, consequentemente.

Para o viés discursivo, o dicionário é “um objeto histórico e de representação da relação do falante com sua língua, na necessidade de um imaginário de unidade da língua nacional” (ORLANDI, 2002, p. 103).  Assim, tomamos o dicionário como discurso, por serem textos produzidos em determinadas condições e tendo seu processo de produção vinculado a uma certa rede de memória diante da língua. Como nosso interesse de pesquisa recai sobre os dicionários regionalistas, cabe pontuar, segundo Petri (2012), que 

 

o dicionário de termos regionalistas funciona como um lugar de referência e de preservação do passado de glórias. Ali não estão “guardadas” apenas as palavras e as expressões da língua, ali são guardados os sentidos que “devem” permanecer. (PETRI, 2012, p. 30).

 

Considerando os dicionários regionalistas gaúchos e, mais especificamente, a região das Missões, observamos que a língua, em sua fluidez, é bem característica da região e não se encontra em outros lugares do Brasil, possuindo regionalismos próprios. 

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

 

Os verbetes analisados, a partir de suas definições nos dicionários regionalistas, atestam o discurso determinado pela historicidade e memória das reduções jesuíticas. Por exemplo, o termo missioneiro, gentílico da região, cujo habitante o recebe além do gentílico de gaúcho, fenômeno que não acontece em outras regiões do estado. Nos dicionários analisados, o verbete relaciona-se, majoritariamente, com as Missões Jesuíticas, seja habitante da região atualmente, seja referente ao indígena que habitava a redução nos séculos XVII e XVIII. 

Observemos o Dicionário Gaúcho Brasileiro (2003, p. 39):

 

MISSIONEIRO, adj. 1. Relativo às antigas missões jesuíticas. 2. Relativo à região em que se localizavam os Sete Povos das Missões (V. Missões.)S.m. 3. Indígena das antigas missões jesuíticas. 4. O natural ou habitante da região missioneira do Estado. (negritos nossos)

 

Já o verbete índio, nos dicionários regionalistas, não se refere ao membro de alguma etnia indígena, mas, sim, ao sujeito gaúcho que é destemido, valente e peão de estância. Esse aspecto indica que, no Rio Grande do Sul, ainda permanece a memória de uma cultura colonizadora fortíssima. Essa memória discursiva, na perspectiva da Análise de Discurso, consiste no que se fala antes, em outro lugar, independentemente, o que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito

O índio recebe a denominação de peão de estância antes de receber a de gaúcho:  

 

ÍNDIO, s. Homem do campo. Peão de estância. Indivíduo valente, bravo, disposto, destemido, valoroso. (Dicionários de Regionalismos do Rio Grande do Sul, 1984, p. 246, negritos nossos)

 

Acerca do verbete gaúcho, temos as seguintes repetições: habitante do Rio Grande do Sul ou interior e, com exceção do Houaiss, natural do estado; dedicado às lidas campeiras; vida pastoril; habitante do Uruguai e Argentina; dos dicionários regionalistas: antigamente, contrabandista, changador, gaudério, coureador, desregrado, andejo; remanescentes de tribos guerreiras amestiçados com portugueses e espanhóis; hospitaleiros, etc. No Dicionário Gaúcho Brasileiro (2003, p. 265) encontra-se:

 

GAÚCHO, adj. e s.m. 1. O habitante ou natural do Rio Grande do Sul; rio-grandense-do-sul. 2. Pessoa do interior do Rio Grande do Sul, dedicado à vida pastoril e perfeito conhecedor das lidas campeiras; o homem do campo. 3. Habitante do Uruguai e da Argentina, da região da campanha, de hábitos e origens semelhantes aos do gaúcho rio-grandense. 4. Hábil cavaleiro, que monta com garbo e elegância. 5. Antigamente: caçador de gado selvagem, contrabandista [...] a partir de meados do século XIX, a palavra perdeu sua conotação pejorativa, revestindo-se de conteúdo nitidamente elogioso, de homem digno, bravo e destemido. [...] o amor arraigado às tradições. (negritos nossos)

 

Como pontua Petri sobre o imaginário gaúcho, não temos apenas uma imagem única, mas, sim, diferentes representações que estão ligadas às diferentes condições de produção, “a partir das quais se constituem os efeitos de sentidos evidentes, tanto no mundo social quanto no mundo ficcional, reinventando incansavelmente o imaginário social sobre o gaúcho” (PETRI, 2009, p. 4).

Ao analisar o verbete nos dicionários, encontramos uma grande discrepância quanto ao tamanho de cada descrição nos três dicionários citados. Enquanto que, nos regionalistas, elas são bem mais extensas, no Houaiss, temos pouco mais de 4 linhas. Isso nos faz refletir no que Orlandi chama de efeito de completude.

Quando se reflete sobre o dicionário, parte-se do pressuposto que ele abarca todas as palavras de determinada língua, o qual, no entanto, produz esse efeito ao buscar representar a língua. O dicionário, enquanto instrumento linguístico, constrói uma determinada memória social, marcando a relação da ciência com o Estado. O dicionário produz a ilusão de que a língua é representável como tal, uma vez que, conforme Orlandi, “o dicionário assegura, em nosso imaginário, a unidade da língua e sua representabilidade: supõe que um dicionário contenha (todas) as palavras da língua” (2002, p. 103).

 Esse efeito de unidade que o dicionário produz, vincula-se ao que Orlandi (2002) pontua sobre a língua imaginária, a qual “é a que os analistas fixam com suas sistematizações e a língua fluida é a que não se deixa imobilizar nas redes dos sistemas e das fórmulas” (p. 22). Assim, a língua imaginária é aquela idealizada por normas e coerções, a língua das gramáticas e dos dicionários, já a língua fluida se distancia de regulações, está, e é, modificada constantemente. Nesse sentido, a língua imaginária vincula-se à ilusória homogeneidade da língua e dos sentidos.

 

CONCLUSÃO

 

Compreendemos que a constituição do sujeito missioneiro foi afetada por esse passado histórico particular da região das Missões, fazendo com que o gentílico se diferencie do gaúcho, além de fazer com que o sujeito seja missioneiro antes de ser gaúcho. Assim como o verbete índio, nos dicionários regionalistas, não carrega o mesmo significado do verbete no dicionário de língua portuguesa, pois, nas Missões, o índio também refere-se ao peão de estância, antes, ainda, de receber o título de gaúcho. Ao analisar os verbetes, entendemos que o sentido não é único, já que as definições possuem relação com a memória discursiva e com a historicidade. Ou seja, os dicionários regionalistas atuam para colocar em funcionamento uma língua imaginária, pois buscam ‘guardar’ sentidos que devem permanecer, como pontua Verli (2012). Porém, pelo fato de o discurso estar em relação com a memória, verificamos que os sentidos podem ser outros, uma vez que a língua não se deixa fixar, a língua é fluida. Dessa forma, nossa pesquisa contribuiu para compreendermos os efeitos da história e da memória inscritos no discurso metalinguístico regionalista. 



REFERÊNCIAS 



AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. 2. ed. SP: Editora da Unicamp, 2009.

BOSSLE, B.A. João. Dicionário Gaúcho Brasileiro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2003.

CARDOSO, N. Zeno; CARDOSO, N. Rui. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Ed., 1984.

NUNES, H. José. Dicionários no Brasil. São Paulo: Pontes Editora, 2006.

ORLANDI, P. Eni. Língua e conhecimento linguístico. São Paulo: Cortez Editora, 2002.

PETRI, V. Gramatização das línguas e instrumentos linguísticos: a especificidade do dicionário regionalista. Línguas e Instrumentos Linguísticos. Campinas, nº29, p. 23-39, jan. a jun., 2012.

PETRI, Verli. A produção de sentidos “sobre” o gaúcho: um desafio social no discurso da história e da literatura. Conexão Letras. Porto Alegre, vol. 4, nº 4, 2009.

Publicado
05-02-2024
Seção
Formação Inicial, Continuada e Permanente de Professores - Artigo de Pesquisa