Me sentindo professor... Mas depois do PIBID(!)
Resumo
INTRODUÇÃO
O ser docente no Brasil enfrentou e tem enfrentado uma série de desafios desde o processo de formação inicial. Um desses desafios é o ideal de vocação ligado à docência: você não se torna professor/a, você nasce para isso, sendo essa uma crença bastante disseminada até nos dias de hoje. Se voltarmos nossos olhos aos cursos de Licenciatura em Pedagogia e à educação infantil de nossas escolas, observamos as mulheres sendo maioria, em virtude dessa crença. A criação familiar baseada em uma visão patriarcal de sociedade, na qual a mulher tem o(s seus papéis sociais de acordo com o) seu gênero, gênero esse idealizado como biologicamente imposto, faz com que as meninas sejam ensinadas, ou melhor, moldadas a, desde cedo, cuidar dos afazeres domésticos, das/os irmã/os mais novos etc., naturalizando, num discurso biologicista, a sua vocação para a docência (Barduni Filho; Gonçalves e Ferreira, 2022).
Ainda, se constitui como outro desafio para a docência, o que diversos/as autores/as assinalam como a crise das licenciaturas, crise essa que já tive a oportunidade de também discutir em outros dois trabalhos, junto a Cardoso (2022) e a Silva e Nascimento (2020). Por seu turno, a crise das licenciaturas concerne à baixa procura por cursos de licenciatura no ensino superior por efeito de fatores variados, tais como as investidas neoliberais nas instituições de ensino, a presença das tecnologias digitais de informação e comunicação, TDICs, e os ataques políticos à profissão. Essa baixa procura já ocasiona a falta de professores/as em algumas áreas, podendo chegar a uma falta de mais de 230 mil profissionais até o ano de 2040 (Palhares, 2022).
Nessas realidades de muitos desafios, é possível esperançar mediante duas iniciativas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que tem como objetivo contribuir para amenizar a crise das licenciaturas, favorecendo a construção de uma identidade profissional docente, além de aproximar as universidades das escolas públicas. A primeira dessas iniciativas é o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, o PIBID, que foi implantado há 16 anos, em 2007 (Brasil, 2007), sendo remodelado em 2018 (Brasil, 2018a), objetivando a inserção de licenciando/as, que não tenham excedido a primeira metade do curso, nas escolas públicas para criar e participar de práticas metodológicas. Por outro lado, a segunda iniciativa é mais recente, de 2018, e refere-se ao Programa Residência Pedagógica (RP) (Brasil, 2018b), cujo objetivo é inserir licenciandos/as da metade final do curso para aliar seus conhecimentos teóricos às práticas escolares.
Tendo em consideração a breve apresentação do tema acima, neste trabalho, almejo relatar como o meu desejo de atuar como docente foi estimulado pela minha participação no núcleo de Inglês do PIBID 2018 da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
1 METODOLOGIA
Este trabalho consiste em um relato de experiência, de abordagem qualitativa. Metodologicamente, aproximo-me do conceito de escrevivências da Professora Conceição Evaristo (2019). Este trabalho, de igual modo, está inserido no campo da Linguística Aplicada Transgressiva (Pennycook, 2006), a qual procura romper as fronteiras de um fazer epistemológico neutro, positivista e eurocentrado, corporificando as experiências e práticas enquanto docente, nesse caso, em (trans)formação inicial, e se aproximando de autores/as outros.
Para atingir o objetivo proposto, tenho como objeto os meus diários de campo escrevividos à época da participação no PIBID-UFS 2018, além de minhas memórias enquanto professor (em formação inicial) (me) corporifica(n)do em minhas práticas, a fim de conceber uma narrativa em que minha escrita e minhas vivências estejam entrelaçadas.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
A universidade enquanto um espaço eurocentrado de construção epistemológica tende a seguir os moldes positivista e cartesiano de fazer ciência. Nesse sentido, as (formulações de) teorias, de modo habitual, são amplamente aceitas em detrimento das experiências advindas da(s) prática(s). É por esse fundamento que, historicamente, na formação de professores/as essas experiências não foram validadas como importantes para esse processo, sendo adotada a imitação de metodologias e ou modelos prontos, além do conhecimento de técnicas.
Porém, pelo menos a partir do início deste século, a formação de professores/as vem sendo empoderada por uma abordagem reflexiva, na qual esse processo formativo ocorre através das experiências práticas e das consequentes reflexões sobre elas, utilizando-se de instrumentos como o diário de campo, as narrativas e as (pós-)memórias (Maia; Dantas; Santos, 2015; Torres, 2019; Mattos e Caetano, 2019), o que corrobora, no meu entendimento, com a construção de escrevivências (Evaristo, 2019).
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Quando estava na primeira fase do meu ensino fundamental com uns 9 anos de idade, já demonstrava interesse em aprender a língua inglesa. Possivelmente devido à influência dos meios de comunicação e o consequente enaltecimento dos Estados Unidos, mas esse é assunto para uma outra oportunidade. Esse meu interesse em aprender essa língua era barrado por meio de políticas linguísticas e educacionais, capitalismo e colonialidades. Em outras palavras, o ensino de uma língua estrangeira (LE) não é obrigatório no ensino fundamental (EF) menor e por ser negro e pobre, est(ou)ava à margem do poder de acesso a esse privilégio. Meus estudos só vieram a ser iniciados ao chegar, em 2010, à antiga 5ª (quinta) série, isto é, ao ensino fundamental maior, no qual há a obrigatoriedade do ensino de uma LE. Em comparação com outras realidades próximas, tive o privilégio de ter um/a professor/a de inglês em todos os quatro anos/séries do EF maior. Além disso, estava em sala de aula, mais especificamente na 6ª (sexta) série, quando foram lançados os primeiros livros de LE por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático, PNLD 2011. A coleção escolhida na escola foi a Links - English for Teens.
Com o passar dos anos, o meu interesse pela língua só aumentava e ao ser questionado acerca de minha preferência quando fosse prestar o Exame Nacional do Ensino Médio, ENEM, para concorrer a um curso de nível superior, não hesitava em responder: “inglês!”. Em 2014, chego ao ensino médio e novamente tenho a oportunidade de estudar durante os três anos/séries a língua inglesa e também a língua espanhola, de maneira ininterrupta. Dois anos mais tarde, em 2016, realizei o ENEM e o resultado final foi liberado em janeiro de 2017. Em seguida, cadastrei-me no Sistema de Seleção Unificada, o SISU, e a primeira opção das duas disponíveis foi a licenciatura em Letras-Inglês na Universidade Federal de Sergipe (UFS), utilizando-me nesse processo do direito às cotas para pessoa negra, com vulnerabilidade social e estudante de escola pública.
O resultado foi o melhor possível: fui aprovado! Seria, então, o segundo da família a ingressar no ensino superior e o primeiro em uma universidade pública. Só que cursar uma licenciatura, ser professor, não fazia parte de meus planos por vários motivos, inclusive fui muito julgado por familiares acerca de minha escolha pelo curso. Ser professor talvez seria uma decorrência, pois o meu foco estava em aprender a/sobre a língua inglesa. Entretanto, um balde de água fria é em mim jogado quando, já iniciadas as aulas do curso na Universidade, escuto de uma professora que nós, alunos/as do curso, estávamos ali para aprender a ensinar inglês e não aprender inglês. Era uma diferença muito grande entre uma coisa e outra.
Contudo não fui abalado por essa fala. Estava encantado com o curso e dei prosseguimento. Com um pouco mais de um ano de curso, surgiu a seletiva para a participação como bolsista ou voluntário no PIBID, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Eram dois núcleos de Inglês no Departamento de Letras Estrangeiras (DLES) da UFS, um coordenado pela Professora Dra. Ana Karina de Oliveira Nascimento e outro coordenado pela Professora Dra. Ana Lúcia Simões Borges Fonseca. Fui aprovado como bolsista no primeiro núcleo e as minhas atividades foram realizadas em duas escolas: no Centro de Excelência Dom Luciano José Cabral Duarte, no centro de Aracaju; e no Colégio Estadual Dr. Carlos Firpo, localizado no centro do município de Barra dos Coqueiros. Na primeira escola fui supervisionado pela Profa. Deyseany Nunes Lima da Cruz e pelo Prof. Valber Almeida Vasconcelos nessa última.
O núcleo iniciou suas atividades em agosto de 2018 e a primeira leitura sugerida pelas coordenadoras dos núcleos foi o livro Pedagogia da Autonomia do Professor Paulo Freire. Deveríamos lê-lo e compartilhar nossos (des)aprendizados na reunião seguinte. Lembro que a leitura das palavras contidas naquele pequeno livro transbordavam vida, paixão, amor pela docência e uma docência que não se resumia a si mesma, a uma profissão, mas Freire nos apresentava uma docência humana, que olhava com um olhar outro o outro, a outra, ressignificando os verbos ensinar e aprender para além dos sentidos tecnicistas e capitalistas.
Era um olhar, um (res)significado que eu até poderia ter internalizado, entretanto estava adormecido, esquecido, ou mesmo eu não tinha esse olhar e foi preciso a humanidade de Freire, em um mundo de desumanidades, para me apresentar. Essa foi uma das primeiras vivências que me aproximou de um querer ser professor.
Um segundo momento que me leva a esse querer ser professor dá-se a partir de uma reflexão propiciada pela memória de um abraço dado por uma aluna, quando ela falou sobre o desejo de que eu voltasse logo à escola (para continuar as atividades). Isso me marcou profundamente, tendo em vista que, naquele lócus, eu não estava fazendo mais do que minha obrigação de bolsista ID, não queria estar ali para “chamar atenção”, criar vínculos. Nem me encontrava ali para ensinar, estava ali para aprender (a ser professor). E aprendi com aquela garota, na prática, na vivência, o que o próprio Freire nos deixa registrado lá em Pedagogia da Autonomia (1996): quem ensina, aprende e quem aprende, ensina.
CONCLUSÃO
A formação de professores/as bem como a docência no Brasil enfrentam diversos desafios que provocam a crise das licenciaturas, mais uma crise nesse mundo de crises provocadas pelos desdobramentos do processo de globalização e do capitalismo neoliberal (Santos; Cardoso, 2022; Silva; Santos; Nascimento, 2020). Nesse caminho, a CAPES apresenta duas possibilidades para fomentar o enfrentamento dessa crise: os programas PIBID e RP. Neste resumo, tive como objetivo, apesar do curto espaço, relatar como o meu desejo de atuar como docente foi estimulado pela minha participação no núcleo de Inglês do PIBID 2018 da UFS.
Como conclusão, considero que esses programas contribuem de maneira sólida para o enfrentamento dessa crise, tendo em conta que atingem um de seus objetivos ao colocar licenciandos/as como eu, à época, em contato com as realidades da escola, favorecendo uma (re)descoberta do ser docente por meio da prática, das escrevivências, das memórias (Evaristo, 2019; Mattos & Caetano, 2019).
REFERÊNCIAS
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