Rede de atenção à saúde e as pessoas transgênero: desafios e perspectivas para um cuidado integral no Sistema Único de Saúde (SUS)
Palavras-chave:
Atenção Integral à Saúde; Determinantes Sociais da Saúde; Educação Permanente; Equidade em Saúde; Pessoas Transgênero.Resumo
Introdução: a população transgênero enfrenta barreiras significativas no acesso e na permanência nos serviços de saúde. Embora o Brasil tenha avançado com a implementação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e transexuais, em 2011 pela Portaria n° 2.836 (Brasil, 2013), ainda persiste um cenário de exclusão, discriminação e invisibilidade institucional que compromete a efetividade da Rede de Atenção à Saúde (RAS). A identidade de gênero, entendida como um determinante social da saúde, revela-se central na compreensão das iniquidades vivenciadas por essa população. A negação de direitos básicos, como o uso do nome social, o acolhimento sem julgamento e o acesso a terapias hormonais ou cirurgias afirmativas de gênero, acentua o sofrimento psíquico e a vulnerabilidade social (Silva et al., 2021). Nesse cenário, a construção de uma rede de atenção à saúde que seja de fato inclusiva exige a superação de paradigmas de modelos biomédicos cisnormativos e a valorização de saberes e práticas que considerem a diversidade humana como central para o cuidado em saúde. Objetivo: refletir criticamente, a partir da literatura científica, sobre os desafios e possibilidades na construção de uma RAS que assegure o cuidado integral, equitativo e respeitoso às pessoas transgênero no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Metodologia: trata-se de uma revisão integrativa de literatura, em uma abordagem qualitativa. A busca foi realizada no primeiro semestre de 2025, através dos descritores “Atenção Integral à Saúde", “Determinantes Sociais da Saúde”, “Educação Permanente", “Equidade em Saúde”, e “Pessoas Transgênero", nos seguintes buscadores e/ou bases de dados: Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Scientific Electronic Library Online (SciELO), e PubMed (base de dados e sistema de pesquisa online para literatura biomédica e de ciências da vida, desenvolvido e mantido pelo National Center for Biotechnology Information - NCBI da National Library of Medicine - NLM nos Estados Unidos da América - EUA). Como critério de inclusão, foram selecionados apenas artigos publicados nos últimos 10 anos, a fim de garantir a atualidade e a relevância das informações, em língua portuguesa, inglesa ou espanhola. A análise dos dados ocorreu de maneira crítico-reflexiva, a partir dos de referenciais teóricos, filosóficos e epistemológicos que ancoram o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, o SUS, e os estudos/teóricos trans, e a organização dos resultados ocorreu com a identificação dos principais pontos em comum entre os autores e a sistematização das ideias em torno do tema central do estudo. Resultados e Discussão: compreender alguns dos princípios que fundamentam o SUS (universalidade, equidade e integralidade) é também reconhecer que os sujeitos não vivem isolados, mas inseridos em contextos marcados por relações sociais, econômicas e culturais. Assim, olhar para os coletivos sociais com sensibilidade às suas especificidades é um passo essencial para que o cuidado em saúde ultrapasse a lógica técnica e se aproxime da realidade concreta de cada existência. Os pesquisadores Tenório e Palhano (2022), dois ativistas transmasculinos, reforçam em seu estudo que o olhar às transidentidades era voltado à disforias e a busca por modificações corporais, partindo de um ideal de “corpo errado x corpo certo”, porém nos dias atuais compreende-se que o processo de despatologizar estes corpos também se relaciona com este pensar, uma vez que permite compreender a pluralidade de expressões identitárias, afinal a “própria comunidade trans compreende que identificar-se enquanto trans não se deve necessariamente à disforia de gênero e a modificações corporais” (Tenório; Palhano, 2022, p.80). Nesse sentido, pensar uma RAS minimamente acolhedora à população transgênero implica romper com a perspectiva histórica centrada exclusivamente na patologia e visão biomédica. Trata-se de ampliar o olhar para os determinantes sociais da saúde, conforme proposto por Dahlgren e Whitehead, reconhecendo que as iniquidades vividas por essa população não são apenas consequências clínicas, mas expressões de processos sociais, econômicos e simbólicos que produzem vulnerabilidades concretas que afetam a qualidade de vida das pessoas trans. Nessa perspectiva, as RAS emergem como uma estratégia robusta e eficaz para atender às necessidades específicas dessa população. Ao considerar as RAS, estamos nos referindo a um modelo de sistema integrado, cooperativo e de corresponsabilidade, que envolve equipes multidisciplinares nas diferentes esferas do cuidado e a articulação e colaboração mútua entre elas (Carvalho Oliveira, 2016). Neste contexto, o próprio Ministério da Saúde, na Portaria Nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, estabelece no seu sexto artigo que a RAS tem como atribuição garantir um cuidado integral às pessoas transexuais e travestis dentro do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2013). Porém, diferentes estudos demonstram que a maior barreira para efetivação de um cuidado respeitoso e equânime está no desconhecimento e implicação nos valores individuais dos profissionais de saúde, assim como a omissão do Estado nos casos de transfobia. Tanto em uma revisão integrativa de literatura, com coleta de dados entre 2008 e 2017, e em uma revisão narrativa de literatura, com coleta de dados entre 2012 à 2022, evidenciaram que apesar de avanços normativos como a regulamentação do Processo Transexualizador (PrTr) no SUS, persistem fragilidades significativas no atendimento à população trans. Entre os principais desafios estão o despreparo das equipes de saúde, a presença de estigmas sociais, a patologização das identidades trans, a escassez de recursos e a baixa cobertura hospitalar para serviços específicos. Soma-se a isso a insuficiência de políticas eficazes de combate à discriminação homofóbica, transfóbica e travestifóbica, bem como a falta de acolhimento qualificado e humanizado por conta da ausência de diretrizes e locais especializados para o atendimento das pessoas trans. Tais fatores limitam o acesso pleno e a permanência dessa população nos serviços de saúde, comprometendo o cuidado em sua dimensão biopsicossocial (Boldrin et.al., 2025; Rocon et. al., 2020). O resultado é o afastamento progressivo dessa população dos serviços formais de saúde, recorrendo muitas vezes a práticas inseguras, automedicação e redes informais. O uso correto do nome social e o respeito à identidade de gênero são práticas fundamentais para o acolhimento ético e humanizado, que deve ser entendido não apenas como um protocolo técnico, mas como um compromisso com a dignidade humana. Para romper estes entraves, a educação permanente em saúde, quando bem implementada, contribui significativamente para a redução das iniquidades em saúde e para a melhoria da qualidade dos serviços prestados (Rocha et.al., 2025). Quando falamos da formação dos profissionais da saúde, muito se centra em estudos biomédicos e dentro do escopo binário, velando a pluralidade de corpos e identidades. Ainda é rara a inserção de conteúdos sobre saúde da população trans nos currículos da graduação em saúde, o que contribui para a reprodução de estigmas e práticas discriminatórias. A educação permanente e a sensibilização das equipes de saúde são estratégias fundamentais para a transformação das práticas institucionais e para o fortalecimento de uma rede de cuidado acolhedora. Considerações finais: Refletir sobre a construção de uma RAS que acolha de maneira integral, humanizada e respeitosa as pessoas transgênero requer o enfrentamento de barreiras estruturais e simbólicas que ainda marcam os serviços de saúde. O fortalecimento da educação permanente em saúde, a inserção de conteúdos sobre diversidade nos currículos de formação e o compromisso ético com a escuta e a dignidade são caminhos possíveis para consolidar um SUS verdadeiramente equitativo. Garantir o cuidado em saúde para essa população não é apenas uma questão técnica, mas um imperativo de justiça social e de reconhecimento da pluralidade humana.