Entre saberes e territórios: adaptando o ensino do Processo de Enfermagem à realidade indígena

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Palavras-chave:

interculralidade, formação profissional, processo de enfermagem, população indígena, enfermagem

Resumo

Introdução: o território, enquanto categoria de análise na geografia da saúde, revela as múltiplas relações que os sujeitos estabelecem com o espaço, influenciando diretamente na forma como vivenciam os processos de saúde e adoecimento. Nesse contexto, a atenção à saúde de povos indígenas, no Brasil, exige uma abordagem que respeite seus territórios, culturas, modos de vida e saberes tradicionais. Esse cuidado diferenciado, previsto pela Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), desafia os modelos tradicionais de ensino, especialmente na formação em Enfermagem, frequentemente centrada em paradigmas biomédicos e homogêneos. Nesse viés, cita-se o Processo de Enfermagem (PE), uma metodologia científica fundamental que organiza o trabalho do enfermeiro, assegurando a assistência de saúde de maneira sistemática, segura e ética (Brasil, 2024). Ele é composto por etapas que se relacionam entre si e que garantem a individualização e a integralidade do cuidado, essenciais no contexto da atenção à saúde indígena. Desta forma, o cuidado vai além da dimensão biológica, incorporando aspectos culturais, espirituais e comunitários, o que exige um olhar sensível e adequado à diversidade. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), que preconiza equidade e respeito à diversidade sociocultural (Brasil, 2002), é fundamental adaptar o ensino do PE para atender às necessidades específicas dos estudantes indígenas. Isso inclui a valorização dos saberes tradicionais dessas populações, respeitando suas culturas e práticas de cuidado. A Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de novembro de 2001, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem aprofunda a diretriz de inclusão dos saberes e práticas indígenas no ensino da Enfermagem, destacando a importância da formação de profissionais sensíveis às realidades socioculturais diversas (Brasil, 2001). Diante do exposto, é objetivo deste trabalho relatar a experiência de ensino do Processo de Enfermagem para estudantes indígenas em uma universidade pública do oeste de Santa Catarina, com foco na análise das estratégias pedagógicas empregadas na valorização dos saberes tradicionais indígenas na construção do PE, refletindo como essas estratégias podem contribuir para uma formação crítica e intercultural, alinhada aos princípios do SUS. Materiais e métodos: trata-se de um relato de experiência, de abordagem qualitativa e caráter descritivo, sobre as atividades de monitoria vinculadas ao componente curricular “Introdução à Gestão e Gerenciamento de Enfermagem nos Serviços de Saúde”, ofertado no segundo nível, que faz parte do novo projeto pedagógico do curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, Santa Catarina, Brasil. As atividades ocorreram no segundo semestre de 2024 e contaram com a participação de três monitores (um remunerado e dois voluntários), duas professoras colaboradoras, uma professora coordenadora e doze estudantes indígenas. As estratégias metodológicas adotadas envolveram rodas de conversa, estudos dirigidos e oficinas práticas utilizando estudos de caso que integraram o PE à realidade sociocultural indígena. Resultados e discussão: a monitoria revelou que estudantes que migram de outras regiões enfrentam dificuldades para compreender a territorialização estabelecida localmente, o que impacta diretamente na aplicação do PE em contextos que exigem sensibilidade às especificidades étnico-culturais dos povos indígenas. O PE, por sua vez, é ensinado com foco em uma abordagem normativa, o que dificulta sua adaptação a contextos culturais distintos. Nesse sentido, estratégias pedagógicas diferenciadas precisaram ser pensadas e têm sido desenvolvidas durante as monitorias na UFFS para enfrentar esse desafio. Durante as atividades de ensino ofertadas pelas monitorias, os relatos dos estudantes indígenas revelaram percepções singulares sobre o cuidado em saúde, marcadas por experiências vividas em seus territórios. Um dos aspectos enfatizados foi a forma diferenciada de acesso aos serviços de saúde, contrária do modelo convencional em que é o sujeito que busca por atendimento. Nas aldeias, o atendimento, muitas vezes, vai em busca dos indivíduos, respeitando seus modos de vida e dinâmicas comunitárias. Esse deslocamento do cuidado para dentro do território representa uma mudança significativa no processo de construção da saúde indígena. Um dos estudantes relatou que, até poucos anos atrás, o atendimento de saúde era buscado apenas em situações extremas, geralmente associadas ao risco de morte. Tal depoimento evidencia que o conceito de cuidado em saúde ainda está em processo de consolidação por esta população, marcado por uma história de exclusão, mas também por uma crescente valorização do cuidado contínuo, preventivo e intercultural. Essa e outras falas reforçam a importância de pensar em estratégias pedagógicas sensíveis às experiências de vida dos estudantes, permitindo que o PE seja compreendido e praticado a partir de uma perspectiva integrada e respeitosa às realidades indígenas. Diante desse cenário, buscou-se adaptar o ensino do PE - que compreende cinco etapas interligadas (coleta de dados, diagnóstico de enfermagem, planejamento, implementação e avaliação (COFEN, 2024) - por meio de abordagens narrativas culturalmente sensíveis, respeitando o panorama de saúde-doença construído pelos próprios estudantes. Essas estratégias contribuíram para uma maior aproximação entre os conteúdos teóricos e as vivências concretas dos estudantes em seus contextos comunitários. Foi reforçada a necessidade de co-construção do plano de cuidados com os usuários e sua comunidade. E, por último, na avaliação, incentivou-se uma abordagem contínua e sensível ao contexto cultural, considerando que os resultados esperados poderiam diferir daqueles definidos pela lógica biomédica ocidental. Além disso, foi introduzido o método SOAP (Subjetivo, Objetivo, Avaliação e Planejamento) como ferramenta complementar para o registro do processo, facilitando a organização, bem como a sistematização das informações coletadas durante o cuidado. Ressalta-se que a adaptação das práticas pedagógicas para atender às barreiras linguísticas e epistemológicas foi um dos desafios centrais. Foram utilizadas metodologias ativas como dramatizações ao simular um usuário que apresentou diversas queixas, além de debates interativos que facilitaram o engajamento dos estudantes e permitiram uma abordagem mais dinâmica e inclusiva. A formação crítica e intercultural foi um dos pilares do ensino, alinhando-se ao enfrentamento das iniquidades no contexto de saúde. Considerações finais: o ensino do PE para estudantes indígenas exige um compromisso ético-político com a inclusão, bem como o reconhecimento dos saberes tradicionais. A experiência relatada destacou a importância da escuta culturalmente competente e da adaptação dos instrumentos pedagógicos para as especificidades culturais das populações indígenas. Além disso, a flexibilização dos conteúdos e a adaptação pedagógica adotada foram essenciais para o desenvolvimento de uma formação crítica que contemplasse aspectos interculturais. Recomenda-se que as instituições de ensino superior promovam programas de capacitação para os docentes que trabalham com estudantes indígenas, com foco na formação intercultural, desde o início da graduação, conforme orientações da Resolução do COFEN número 736 (COFEN, 2024). O relato também evidenciou a relevância de adaptar o ensino do PE às especificidades culturais e territoriais dos povos indígenas, valorizando seus saberes tradicionais e modos próprios de compreender a saúde e o adoecimento. As estratégias pedagógicas utilizadas como rodas de conversa, oficinas práticas, estudos de caso e metodologias ativas mostraram-se eficazes para promover uma aprendizagem mais significativa, contextualizada e sensível às realidades socioculturais dos estudantes indígenas. A iniciativa contribuiu não apenas para ampliar a compreensão dos estudantes sobre o PE, mas também para fortalecer sua identidade profissional enquanto futuros enfermeiros comprometidos com a equidade, com o respeito à diversidade e com a integralidade do cuidado. A experiência também revelou importantes desafios, especialmente relacionados às barreiras linguísticas, epistemológicas e à necessidade de flexibilização dos métodos de ensino tradicionalmente adotados na formação em saúde. Nesse sentido, reafirma-se a importância de práticas educativas interculturais no ensino superior em Enfermagem, que dialoguem com os princípios do SUS e com as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Formar profissionais preparados para atuar com sensibilidade cultural é essencial para consolidar um cuidado mais humano, ético e equitativo, capaz de atender às complexas demandas das populações indígenas e fortalecer a inclusão no campo da saúde.

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Publicado

20-07-2025

Edição

Seção

ET 5 - Saberes tradicionais e práticas de cuidado