Entre deslocamentos e silêncios: acesso de mulheres rurais de Nonoai e Erechim/RS ao tratamento de câncer de mama e colo do útero
Palavras-chave:
Acesso aos Serviços de Saúde; Desigualdades em Saúde; População Rural; Saúde da Mulher; Determinantes Sociais da Saúde.Resumo
Introdução: A saúde é um direito constitucional no Brasil, mas as desigualdades socioterritoriais e de gênero seguem como obstáculos para o acesso equitativo a serviços especializados. A concentração da oferta de saúde de alta complexidade nos centros urbanos penaliza populações do campo, especialmente mulheres que, além de pacientes, são também cuidadoras. Estudos como os de Vianna et al. (2005) e Barata (2009) apontam para a relevância do território como fator que expressa e produz desigualdades em saúde. Esta pesquisa integra o projeto nacional da chamada CNPq/MS No 21/2023 - Estudos Transdisciplinares em Saúde Coletiva. Neste evento, será apresentado uma parte dos resultados da pesquisa que busca analisar o acesso e a mobilidade de mulheres rurais da 11ª Coordenadoria Regional de Saúde de Erechim/RS, com foco exclusivamente na análise das entrevistas com gestores(as) municipais, com o intuito de compreender como a rede de atenção à saúde é organizada e percebida por quem atua na gestão local dos serviços. Objetivo: Analisar os desafios enfrentados por mulheres rurais no acesso ao tratamento de câncer de mama e do colo do útero, a partir da percepção de gestores(as) de saúde dos municípios de Erechim e Nonoai, pertencentes à 11ª Coordenadoria Regional da Saúde do RS. Metodologia: Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, inserida no projeto multicêntrico “Acesso da população rural à saúde”. A etapa local foi realizada no território da 11ª Coordenadoria Regional da Saúde de Erechim/RS. Foram analisadas entrevistas semiestruturadas realizadas entre setembro de 2024 e abril de 2025 com gestores(as) de saúde dos municípios de Erechim (médio porte) e Nonoai (pequeno porte e majoritariamente rural). Dois roteiros orientaram a coleta: um voltado aos gestores(as) da saúde e outro aos(as) responsáveis pelo Tratamento Fora do Domicílio (TFD). O primeiro contempla 34 questões abertas, organizadas em seis blocos temáticos: perfil institucional, prevalência de doenças, oferta de atenção oncológica (mama e útero), cuidados no pós-tratamento, impactos da COVID-19 e ações junto a populações tradicionais. O segundo roteiro, com 23 perguntas, aborda a estrutura do transporte, gestão, custos, fluxo de atendimento, casas de apoio e sugestões de melhoria. As entrevistas foram transcritas, codificadas e analisadas à luz da interseccionalidade, da Geografia da Saúde e dos Determinantes Sociais em Saúde. Também foram utilizados dados secundários (DATASUS, CNES, IBGE) e mapas temáticos produzidos em QGIS. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), sob parecer consubstanciado nº 6.289.066 e CAAE nº 82036623.0.0000.5564, conforme Resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde e Lei nº 14.874/2024. Resultados e Discussão: Os achados revelam elementos comuns e contrastantes entre os municípios de Erechim e Nonoai no que diz respeito à infraestrutura, regulação e percepção institucional sobre o acesso à saúde de alta complexidade. Em ambos os casos, as falas das gestoras entrevistadas evidenciam uma baixa capacidade crítica frente às limitações dos serviços, acompanhada da ausência de mecanismos de avaliação a partir das experiências das usuárias. Nenhum dos municípios mencionou instrumentos de escuta ativa ou avaliação participativa, tampouco foram indicadas sugestões concretas de melhoria do serviço, apesar das queixas sobre lentidão nos fluxos do sistema estadual GERCOM. Em Nonoai, o transporte sanitário é considerado suficiente pela gestão, mas relatos de pacientes revelam o oposto: há casos em que o transporte não consegue chegar às residências, o que indica uma ruptura entre planejamento e território vivido. Já em Erechim, destaca-se a sobrecarga dos serviços de oncologia e a dificuldade em identificar mulheres residentes no campo para ações específicas, o que foi justificado pela gestão com base na baixa densidade populacional e na "modernização agrícola", ignorando os efeitos disso para as mulheres que permanecem em zonas rurais. Nenhuma das entrevistas apresentou dados desagregados por raça, idade ou local de moradia, revelando uma profunda invisibilização dos marcadores sociais da diferença. A interseccionalidade e a espacialidade — categorias centrais para a compreensão das desigualdades em saúde — são completamente ignoradas nas falas institucionais. O silenciamento dessas dimensões reitera o que Barata (2009) aponta ao considerar o espaço geográfico como estruturante das desigualdades sociais e da produção do adoecimento. Além disso, nota-se a reprodução de uma lógica tecnocrática e normativa, na qual o funcionamento "formal" da rede é tomado como evidência de eficácia, sem o devido reconhecimento das rupturas e barreiras reais que atravessam o cotidiano de mulheres em situação de vulnerabilidade. A ausência de políticas específicas para mulheres rurais, bem como a falta de atenção aos aspectos emocionais, simbólicos e de reintegração social no pós-tratamento (como no caso da paciente que não fez reconstrução mamária), reforçam as múltiplas camadas de exclusão. Considerações finais: Os resultados apresentados revelam a ausência de uma abordagem crítica por parte das gestões municipais quanto às desigualdades que estruturam o acesso ao tratamento oncológico para mulheres rurais. O foco excessivo na dimensão técnica-administrativa, a invisibilização dos marcadores sociais da diferença e a omissão de propostas concretas de melhoria demonstram o distanciamento entre o discurso institucional e a realidade vivida pelas usuárias. A análise aqui apresentada representa uma etapa inicial da pesquisa, centrada nas entrevistas com gestores(as) municipais. No entanto, o estudo encontra-se em fase de aprofundamento com a análise dos roteiros aplicados a usuárias e cuidadoras, que trarão elementos fundamentais para compreender os silêncios e omissões institucionais a partir da perspectiva de quem vivencia, em sua territorialidade e corporalidade, os impactos das desigualdades. A escuta dessas mulheres permitirá tensionar as representações hegemônicas sobre o funcionamento das redes de atenção e revelar os modos como raça, gênero, ruralidade e classe atravessam o cuidado em saúde. A continuidade da pesquisa buscará integrar essas dimensões à análise espacial, produzindo conhecimento comprometido com a equidade territorial e o fortalecimento do SUS como política de justiça social.
Descritores (de 3 a 5, retirados do DeCS/BVS): Acesso aos Serviços de Saúde; Desigualdades em Saúde; População Rural; Saúde da Mulher; Determinantes Sociais da Saúde.
Eixo temático: Eixo temático 6 - Saúde da população rural.
Referências:
BARATA, Rita Barradas. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é território. São Paulo: Brasiliense, 2013.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171–188, 2002.
QUIJANO, María Angélica Fernández. Cambios en las relaciones de género en los territorios rurales: aportes teóricos para su análisis y algunas hipótesis. Cuadernos de Desarrollo Rural, Bogotá, v. 5, n. 61, p. 71–91, 2008.
SAQUET, Marcos Aurélio. Entender a produção do espaço geográfico para compreender o território. In: SPOSITO, M. E. B. (org.). Produção do espaço e redefinições regionais. Presidente Prudente: UNESP, 2005.
VIANNA, S. M. et al. Atenção de alta complexidade no SUS: desigualdades no acesso e no financiamento. Brasília: IPEA, 2005.
Financiamento: O projeto aprovado na Chamada N 21/2023 - Faixa B - Estudos Primários e Originais (CNPq/Ministério da Saúde), processo n 444696/2023-7, coordenado pela Profa. Dra. Lorena Lima de Moraes. E financiamento de bolsa de IC pela UFFS
Agradecimentos: Às gestoras municipais entrevistadas e às equipes de saúde dos municípios participantes.