Puerpério de homens transgênero: uma revisão narrativa sobre invisibilidades e potencialidades no cuidado em saúde
Resumo
Introdução: Desde o Movimento da Reforma Sanitária e, especialmente, após a promulgação
da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser compreendida como um direito de toda a população brasileira e dever do Estado, com foco na integralidade do cuidado. No entanto, mesmo com a implementação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), em 2011 pela Portaria nº 2.836 (BRASIL, 2013), a população LGBTQIAPN+ ainda enfrenta múltiplos desafios no acesso e na qualidade da atenção à saúde, especialmente quando se trata de processos como a gestação e o puerpério em homens trans, esse termo se caracteriza quando a identidade de gênero é diferente a atribuída ao nascer, ou seja essas pessoas se percebem e se identificam como um homem transgênero, mas o sexo biológico é feminino, portanto tem “útero” e podem gestar, importante ressaltar que sexo é biológico e gênero é uma construção social. Esses homens trans, em particular, vivenciam uma série de invisibilidades nesse contexto, resultado de uma assistência ainda centrada em culturas cisheteronormativas, o que pode favorecer práticas inadequadas no cuidado em saúde desses homens por parte dos profissionais da saúde. O puerpério, como fase delicada de intensas transformações físicas, hormonais e emocionais, carece de estudos que contemplem suas especificidades quando vivenciado por homens trans. Nesse sentido, o presente estudo, objetiva descrever a abrangência da literatura frente aos cuidados em saúde durante o puerpério de homens trans. Metodologia: Trata-se de um estudo qualitativo, de natureza descritiva e exploratória, desenvolvido por meio de uma revisão narrativa da literatura. A busca foi realizada nas bases de dados SciELO, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), PubMed e Google Scholar, no período de 19 a 22 de abril de 2025. Utilizaram-se os descritores e termos combinados: “puerpério”, “cuidados em saúde” e “pessoas trans”. Foram incluídos estudos publicados nos últimos cinco anos, nos idiomas português, inglês e espanhol, que abordassem aspectos relacionados ao puerpério de pessoas trans com foco no cuidado em saúde. A seleção dos materiais seguiu critérios de relevância temática e adequação ao objetivo do estudo. A análise dos dados foi conduzida a partir da leitura crítica e interpretativa dos textos. Por se tratar de uma revisão narrativa, este estudo não demandou aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, bem como a Lei nº 14.874/2024. Resultados e Discussão: Foram utilizados seis estudos que se enquadraram nos critérios de escolha e, a partir das análises, aponta-se um aumento no número de gestações entre homens trans, sejam elas planejadas ou não. Contudo, observa-se uma lacuna significativa na atenção ao puerpério dessa população, visto que as experiências relatadas pelos homens transgênero evidenciam sentimentos de medo, ansiedade e insegurança durante o puerpério, associados à ausência de profissionais sensibilizados e qualificados para essa assistência, linguagem inadequada e falta de reconhecimento identitário. A literatura reforça que o sistema de saúde brasileiro ainda apresenta fragilidades em acolher de forma integral essa população, mesmo diante de avanços como a Política Nacional de Saúde Integral LGBT. Ainda, potencialidades foram identificadas na atuação de equipes da atenção básica e na humanização do cuidado, especialmente quando há formação continuada e escuta ativa. Os estudos de Silva et al. (2024), Santos e Almeida (2022) e Barbosa (2024) evidenciam a urgente necessidade de reorganização dos serviços de saúde e das práticas profissionais, de modo a garantir equidade no atendimento e respeito à identidade de gênero no contexto puerperal. As práticas de cuidado voltadas ao período gravídico-puerperal ainda se concentram majoritariamente no atendimento pré-natal e na atenção ao parto, negligenciando o acompanhamento e o cuidado destinados aos homens trans que vivenciam o puerpério. Essa lacuna compromete a integralidade do cuidado em saúde e acentua as iniquidades já existentes. Além disso, a insuficiente capacitação dos profissionais de saúde frequentemente resulta em práticas discriminatórias e na perpetuação de um modelo assistencial cisheteronormativo, o que contribui para inseguranças significativas entre homens trans que gestam e enfrentam o ciclo gravídico-puerperal. Tal cenário propicia violações recorrentes de seus direitos. Diante desse contexto, alguns homens trans optam por tornar pública sua gravidez, mas acabam expostos a situações de violência transfóbica, o que evidencia a necessidade urgente de transformação nos modelos de cuidado (Santos, 2022). No que se refere ao puerpério, o estudo de Santos et al. (2022) destaca a temática da amamentação entre homens transexuais. Alguns indivíduos que haviam realizado mamoplastia masculinizadora antes da gestação conseguiram produzir leite em quantidade suficiente, amamentando seus filhos por mais de seis meses. Outros optaram por não amamentar, mas buscaram informações sobre formas alternativas de alimentação infantil, como o uso de bancos de leite humano e fórmulas lácteas industrializadas, com o objetivo de assegurar a nutrição e o desenvolvimento adequado da criança. Diante disso, torna-se responsabilidade dos profissionais de saúde oferecer orientações adequadas desde o pré-natal, respeitando a autonomia desses sujeitos e suas decisões sobre o aleitamento. Do mesmo modo, o puerpério exige atenção aos desafios físicos característicos desse período, como as dificuldades relacionadas à amamentação, incluindo ingurgitamento mamário e mastite — especialmente em homens trans que realizaram cirurgia mamária prévia. Muitos desses indivíduos não receberam suporte adequado, uma vez que os profissionais de saúde não estavam preparados para manejar essas condições em contextos que envolvem identidades dos homens trans. Além das questões físicas, o puerpério envolve desafios significativos para a saúde mental, incluindo oscilações de humor e a necessidade de preparação para possíveis complicações psíquicas, como a depressão pós-parto. Nesse contexto, destaca-se a relevância da rede de apoio ao longo do período gravídico-puerperal, sendo fundamental a presença de familiares e amigos próximos que possam oferecer suporte afetivo e emocional positivo (Mascarenhas, 2024). Paralelamente, alguns estudos relataram experiências positivas vivenciadas por homens trans durante o puerpério. Esses relatos evidenciam a importância de atendimentos clínicos que promovam a naturalização da gestação de homens trans, o reconhecimento da paternidade e a ausência de condutas discriminatórias por parte dos profissionais de saúde. Tais aspectos contribuíram para que o puerpério fosse experienciado de forma mais acolhedora, segura e respeitosa (Santos, 2022). Contudo, é fundamental reconhecer o descompasso entre as vivências de homens trans no período gravídico-puerperal e a legislação brasileira vigente, o que resulta em lacunas na garantia de direitos e na oferta de um atendimento integral, equitativo e de qualidade. Nesse sentido, a implementação de protocolos institucionais específicos constitui uma estratégia essencial para assegurar que pessoas trans recebam cuidados em saúde oportunos, adequados e fundamentados no respeito à sua identidade de gênero (Mascarenhas, 2024). Considerações finais: A literatura analisada evidencia que, apesar de avanços nas discussões sobre saúde de pessoas trans, o puerpério ainda é uma fase marcada pela invisibilidade e quebra na integralidade do cuidado ofertado. As ações de saúde, quando voltadas à população dos homens transgêneros, concentram-se majoritariamente na gestação e parto, quando focadas, desconsiderando o impacto biopsicossocial do pós-parto, o qual além de ser permeado por alterações hormonais bruscas, traz outras complexidades como disforia de gênero. É de extrema urgência o desenvolvimento e a implementação de práticas e políticas públicas que promovam uma abordagem mais ampla, inclusiva e sensível ao cuidado integral durante o puerpério de homens trans. Esse processo deve considerar, de maneira cuidadosa e respeitosa, suas vivências únicas, subjetividades, identidades de gênero e direitos humanos, reconhecendo as especificidades que atravessam suas experiências gestacionais e de maternidade/paternidade. Além disso, é urgente que os serviços de saúde estejam preparados para acolher essa população de forma ética, empática e livre de preconceitos, contribuindo para a superação das barreiras históricas de invisibilidade e discriminação. Estudos futuros devem aprofundar essa temática de forma crítica e comprometida, gerando subsídios para uma formação em saúde mais equitativa, plural e sensível à diversidade de corpos, gêneros e identidades, promovendo assim um cuidado verdadeiramente integral, inclusivo e transformador.