ASSOCIAÇÃO ENTRE O USO DE TELAS NA PRIMEIRA INFÂNCIA COM O DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Autores

  • Isabel Benevides Frossard UFFS
  • Jéssica Boufleur UFFS
  • Ketlin Angelin UFFS
  • Profª. Drª. Shana Ginar da Silva UFFS
  • Lucas Silva Tedesco Guimarães UFFS

Palavras-chave:

desenvolvimento infantil, exposição a telas, primeira infância, marcos do desenvolvimento, uso de telas, uso de tecnologias, Promoção da saúde

Resumo

1. Introdução

Os primeiros anos de vida constituem um período crítico para o desenvolvimento infantil, caracterizado por rápidas e profundas transformações no cérebro e na aquisição de habilidades cognitivas, linguísticas, motoras e socioemocionais. Nessa fase, a interação social e a exploração do ambiente são fundamentais para o aprendizado e para a construção de bases sólidas que sustentam o desenvolvimento ao longo da vida. Evidências científicas indicam que, até os dois anos de idade, as crianças aprendem de maneira mais eficaz por meio de experiências sensoriais e interações humanas, as quais estimulam competências como linguagem, atenção e regulação emocional (Kuhl, 2022). Tais interações contribuem diretamente para a formação e o fortalecimento de circuitos neurais essenciais, moldados pelas experiências vividas nos primeiros anos de vida (Costa et al., 2021).

Paralelo a isso, vive-se em um mundo cada vez mais tecnológico, onde os benefícios da tecnologia para facilitar atividades e promover comunicação são inegáveis. No entanto, estudos recentes apontam impactos negativos do uso excessivo, especialmente no desenvolvimento infantil. Segundo a American Academy of Pediatrics (AAP), crianças menores de dois anos não devem ser expostas a telas, pois, nessa idade, não aprendem significativamente por esse meio, ao contrário das interações humanas, e a exposição está associada a atrasos no desenvolvimento. Além disso, muitos programas infantis, mesmo os “educativos”, são passivos, acelerados e excessivamente estimulantes, prejudicando a concentração e o processamento cognitivo. Esses conteúdos podem ser mais distrativos do que benéficos, especialmente quando substituem brincadeiras livres ou leitura com os pais (Muppalla et al., 2023). A introdução precoce e o uso excessivo de dispositivos digitais podem comprometer funções essenciais como atenção, processamento de informações e regulação emocional (Martins et al., 2025).

O acesso a celulares, tablets, notebooks e smartphones tem ocorrido cada vez mais cedo na vida das crianças, inclusive bebês que ainda não falam. Alguns autores chamam essa exposição excessiva de “intoxicação digital infantil”. Para prevenir os agravos do uso inadequado dessas ferramentas e estimular práticas mais saudáveis, a Sociedade Brasileira de Pediatria (2024) publicou o documento “Menos telas, mais saúde”, com orientações por faixa etária, limites e a necessidade de supervisão adulta qualificada durante o uso. Contudo, poucos estudos avaliam a exposição a telas e seus efeitos no desenvolvimento infantil.

  1. Objetivos

Avaliar a associação entre o uso de telas e o desenvolvimento infantil de crianças de até 24 meses de idade usuárias da atenção primária de Passo Fundo, Rio Grande do Sul.

  1. Metodologia

Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, recorte da pesquisa “Saúde da mulher e da criança no ciclo gravídico-puerperal em usuárias do Sistema Único de Saúde”. Os dados foram coletados entre junho e dezembro de 2024, em cinco Unidades Básicas de Saúde (UBS) da rede municipal de Passo Fundo, RS. A coleta ocorreu por entrevistas presenciais, com questionário pré-testado aplicado por acadêmicos de Medicina treinados. Foram incluídas usuárias com 12 anos ou mais e filhos de até 2 anos em acompanhamento de puericultura durante o período.

A avaliação do desenvolvimento infantil, desfecho principal do estudo, baseou-se no Protocolo de Avaliação dos Marcos do Desenvolvimento Infantil do Ministério da Saúde, conforme a Caderneta de Saúde da Criança. Foram analisados 36 marcos em três domínios: motor (21), social/cognitivo (7) e linguagem (8). Para cada criança, verificou-se se os marcos foram alcançados na idade esperada. Com base nessa avaliação, foram construídos escores por domínio, classificando as crianças em “atingiu todos os marcos” ou “não atingiu pelo menos um marco previsto para a idade”.

A variável de exposição a telas foi analisada de forma dicotômica, considerando ausência de uso diário e presença de exposição (≥1 minuto por dia). A análise estatística foi realizada nos programas PSPP e Stata 12.1, incluindo estatística descritiva, teste do qui-quadrado e regressão logística para estimativa das razões de odds (brutas e ajustadas), com intervalos de confiança de 95%.

As participantes adultas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), enquanto as menores de 18 anos participaram após a assinatura do TCLE pelos pais ou responsáveis, além do Termo de Assentimento. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP/UFFS) sob o parecer de número 6.871.168.

 O estudo foi aprovado pelo CEP/UFFS (parecer nº 6.871.168). Participantes adultas assinaram o TCLE, e menores de 18 anos participaram mediante consentimento dos responsáveis e assinatura do Termo de Assentimento.

  1. Resultados e Discussão

A amostra foi composta por 128 mulheres e seus respectivos filhos(as) que foram considerados elegíveis para este recorte de pesquisa. Observou-se um predomínio de mulheres com idade média de 26 anos (±7,2), com cor da pele autorreferida como pretas, pardas ou indígenas (53,3%).  com cônjuge (65%), e primíparas (40,1%). Quanto às variáveis socioeconômicas, 57,4% das participantes não possuíam atividade ocupacional ativa e a maioria das entrevistadas possuíam renda familiar per capita até meio salário-mínimo (57,3%).

A prevalência de atingimento dos marcos motores, sociais/cognitivos e de linguagem foram, respectivamente,  19% (IC95% 12-27), 38% (IC95% 29-48) e 33% (IC95% 24-42) nas crianças analisadas. Em relação à exposição as telas, o estudo identificou que 44,5% das crianças não eram expostas a qualquer tempo diário de tela, enquanto 55,5% tiveram ao menos 1 minuto de exposição diária.  Ao analisar a relação entre exposição a telas e o alcance dos marcos do desenvolvimento infantil, observou-se que crianças sem exposição apresentaram proporções mais elevadas de desempenho adequado em todos os domínios avaliados. No domínio motor, 36,4% das crianças sem exposição a telas atingiram todos os marcos, enquanto entre aquelas com pelo menos um minuto de exposição a proporção foi de apenas 7,7% (p < 0,001). No domínio social/cognitivo, 54,8% das crianças sem exposição atingiram todos os marcos, contra 27,7% das expostas (p = 0,005). Já no domínio da linguagem, 46,2% das crianças sem exposição alcançaram todos os marcos, em comparação a 24,6% das expostas (p = 0,023). Em termos de estimativa de efeito, mesmo após o ajuste para fatores sociodemográficos maternos, foi evidenciado que crianças expostas a tela tem uma RO de 6,3 (IC95%: 2,10-19,4) maior chance de não atingir o marco de desenvolvimento motor comparado as crianças não expostas. No domínio social/cognitivo essa chance foi de 3,3 (IC95%: 1,39-7,78) e no domínio da linguagem foi de 2,8 (IC95%: 1,15-6,87). Esses achados indicam que a exposição, mesmo que mínima, pode estar associada a menor desempenho no cumprimento dos marcos esperados para a idade. Tal padrão está em consonância com evidências da literatura que indicam que a exposição precoce e frequente a telas na primeira infância pode prejudicar a estimulação motora, a interação social e o desenvolvimento da linguagem. Estudos, como o de Radesky et al. (2015), apontam que o uso prolongado de mídias por crianças pequenas reduz interações com cuidadores, essenciais para habilidades sociais e linguísticas, substituindo atividades sensoriais e motoras. A qualidade do conteúdo e o contexto são cruciais: programas educativos com mediação parental podem trazer benefícios, mas o uso não supervisionado está associado a atrasos na linguagem e no desenvolvimento motor.         

Este estudo apresenta limitações importantes. A amostra foi composta por mulheres atendidas na atenção primária de regiões com maior vulnerabilidade socioeconômica, o que pode ter influenciado os resultados, considerando a natureza multifatorial do desenvolvimento infantil. O delineamento transversal também limita a capacidade de estabelecer relações causais entre a exposição às telas e os atrasos no desenvolvimento, além de possibilitar causalidade reversa. Ademais, a exposição foi autorreferida, o que pode ter gerado viés de memória.

Em contrapartida, o estudo possui relevantes potencialidades. Destaca-se sua realização no contexto do SUS, com uma população pouco representada em estudos sobre o tema, o que reforça sua relevância social. A aplicação de instrumento validado para avaliação dos marcos do desenvolvimento confere robustez metodológica. Os achados oferecem subsídios para políticas públicas e ações educativas voltadas à redução da exposição precoce às telas, alinhando-se às diretrizes de promoção do desenvolvimento infantil saudável.

5. Conclusão

            O presente estudo demonstrou que a exposição a telas esteve associada a menor desempenho no alcance dos marcos motores, sociais/cognitivos e linguísticos na idade esperada, com diferenças estatisticamente significativas entre crianças expostas e não expostas. Esses resultados indicam que o contato precoce com dispositivos eletrônicos pode limitar oportunidades de interação e estimulação essenciais para o desenvolvimento infantil. Diante desse cenário, torna-se imprescindível implementar estratégias de orientação familiar e políticas públicas que promovam ambientes ricos em experiências presenciais e reduzam a exposição a telas na primeira infância, alinhando-se às recomendações de diretrizes nacionais e internacionais de saúde.

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Publicado

06-10-2025

Edição

Seção

Ciências da Saúde - Campus Passo Fundo