VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: CONHECIMENTO, MAGNITUDE E FATORES ASSOCIADOS EM USUÁRIAS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

  • Natasha Cecilia Silva Vilela UFFS Passo Fundo / Estudante
  • Daniela Teixeira Borges
  • Shana Ginar da Silva
Palavras-chave: assistência ao parto, violência contra mulher, atenção à saúde, direito das mulheres, saúde materno-infantil

Resumo

Introdução

O termo Violência Obstétrica (VO) é utilizado para designar e agrupar diversas formas de violência ou danos físicos, mentais ou verbais causados a mulher durante a atenção ao parto; seja no pré-natal, no parto ou pós-parto, ou ainda no atendimento aos casos de abortamento, assim como condutas excessivos, desnecessários e danosos (TESSER et al., 2015).

Apesar de ser um tema ainda pouco explorado, no Brasil, as evidências disponíveis demonstram que um quarto das mulheres que tiveram partos vaginais relatam ter sofrido maus tratos e desrespeito durante a assistência ao parto (VENTURI, GODINHO 2010). Os mais frequentes, são procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, respostas grosseiras e violentas e recusa de atendimento. Ainda assim, grande parte dessas mulheres desconhecem que tenham sofrido violência durante esse período e acreditam que essas condutas são rotineiras e normais da prática obstétrica (LANSKY et al., 2019). É importante destacar que esse tipo de violência tem sido associado a características sociodemográficas das mulheres, como idade, renda familiar e tipo de internação hospitalar (pública ou privada).

Considerando, a falta de debate e conhecimento sobre o tema, e as implicações que podem gerar em termos de saúde pública e materno e infantil, entende-se que a pesquisa terá um impacto positivo para a ciência, pois, além de ampliar o conhecimento acerca do tema, serão compreendidas as principais características da VO, assim como uma melhor compreensão de como o evento ocorre no cenário da assistência ao parto no âmbito do Sistema único de Saúde.

 

2 Objetivo

Analisar a frequência e as principais formas de violência obstétrica sofrida por mulheres usuárias do Sistema Único de Saúde, assim como os fatores sociodemográficos, comportamentais e clínicos associados.

3 Metodologia

Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, sendo recorte da pesquisa: “Saúde da mulher e da criança no ciclo gravídico-puerperal em usuárias do Sistema Único de Saúde” realizado em agosto de 2023 e julho de 2024. A coleta de dados foi realizada no período de dezembro de 2022 a agosto de 2023 nas Unidades Básicas de Saúde São Luiz Gonzaga, Donária/Santa Marta, São José e Parque Farroupilha, cenários de prática da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus Passo Fundo e pertencentes à rede de assistência à saúde de Passo Fundo, RS. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas utilizando um questionário pré-testado e aplicado por estudantes de medicina previamente treinados

Para composição da amostra foram consideradas elegíveis usuárias com idade ≥ 12 anos, que possuíam filhos de até 2 anos e que estivessem em acompanhamento de puericultura nas UBSs supracitadas. Mulheres com alguma deficiência cognitiva que as impedisse de consentir a participação na pesquisa foram consideradas inelegíveis.

Para este recorte foram utilizadas variáveis sociodemográficas, dados clínicos da última gestação, informações do pré-natal e questões sobre VO. Para avaliar o principal desfecho, a prevalência da VO, foram utilizadas 18 questões do instrumento de avaliação para determinar a ocorrência ou não de VO. Sendo 13 questões considerada respostas afirmativas e 5 respostas negativas para ocorrência da prática. Em caso de resposta afirmativa (ou negativa) para, pelo menos, uma dessas questões foi considerado como um caso vivenciado de VO.

Os dados foram duplamente digitados em banco de dados do programa EpiData versão 3.1 (distribuição livre) e a análise estatística, nos programas PSPP (distribuição livre) e Stata (versão 12.1). Realizou-se estatística descritiva (n,%) e análise da distribuição do desfecho segundo variáveis independentes por meio do teste do qui-quadrado adotando-se um nível de significância estatística de 5%. Os fatores associados à VO foram verificados por meio da Regressão de Poisson, sendo que na análise bivariada, geraram-se as Razões de Prevalências (RP) brutas e seus IC95, e, análise multivariada, RP ajustadas e seus respectivos IC95.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Fronteira Sul, com parecer de número: 5.761.013. A participação dos indivíduos foi voluntária e o termo de consentimento livre e esclarecido foi lido e assinado pelos participantes antes da coleta de dados.

 

4 Resultados e Discussão

A amostra final incluiu 256 participantes, observando-se um predomínio de mulheres que se autorreferiram de cor da pele branca (53,9%), idade média de 26,8 anos (DP± 6,0), que possuíam cônjuge (77,0%) e 39,1% possuíam um único filho. A maioria tinha uma renda familiar ≤ 2,5 salários-mínimos (78,8%) e 54,3% das participantes estudaram por menos de doze anos.

Em relação à prevalência de VO foi observado que 60,9% (IC95% 55-67) das mulheres declararam ter sofrido algum tipo de violência durante o ciclo gravídico puerperal. A alta prevalência encontrada nesse estudo é expressivamente maior do que as prevalências previamente reportadas em estudos realizados no Rio Grande do Sul, como em um estudo realizado em Pelotas, RS, em 2015, que constatou que 18,3% das participantes foram vítimas de pelo menos um tipo de tratamento abusivo ou desrespeitoso durante o processo de parto (MESENBURG et al., 2018). No entanto, esse resultado foi inferior à de um estudo nos mesmos moldes realizado em Recife (87%), que foi considerando o uso de apenas uma intervenção como critério suficiente para definir a VO (ANDRADE et al., 2016). Uma hipótese para as divergências entre as prevalências encontradas pode estar relacionada as diferentes terminologias utilizadas, assim como os diversos instrumentos de medida e as metodologias utilizadas para avaliar a ocorrência da VO.

Observou-se que mulheres com idade ≥ 30 (RP= 0,60; IC95: 0,40-0,90) estão menos sujeitas a sofrerem VO em comparação aquelas com idade ≤ 23 anos, enquanto aquelas que realizam parto vaginal apresentam 115% (RP=2,15 IC95 1,53-3,02) maior probabilidade de serem vítimas de VO comparado àquelas que tiveram parto cesárea.

Os achados corroboram com outros estudos que demonstram que as mulheres mais jovens apresentam maior risco de discriminação e maus tratos durante o trabalho de parto, como um estudo norte americano que apresentou que mulheres mais jovens possuem 2,43 vezes mais chances de sofrerem VO (DE MARCO et al., 2008). Esse risco pode estar ligado ao preconceito dos profissionais de saúde, que podem julgar essas mulheres como irresponsáveis pela gestação e início da vida sexual (KRUK et al., 2018). Ainda, a associação da VO com o parto vaginal pode ser explicada pela maior necessidade de orientações e interações entre as mães e os profissionais de saúde durante o trabalho de parto (MARTÍNEZ-GALIANO et al., 2021).

A pesquisa de Browser e Hill (2010) identificou sete categorias de VO: violência física, não consentimento do cuidado, não confidencialidade do atendimento, não dignidade do cuidado, discriminação baseado nos atribuídos específicos do paciente, abandono do cuidado, e detenção em estabelecimento. As práticas não se encaixam em apenas uma categoria, podendo abranger uma ou mais delas.  A violência física inclui toques vaginais dolorosos, intervenções sem anestesia, imobilizações desnecessárias, e posições obrigatórias durante o parto, como a litotomia, além de manobras de Kristeller e episiotomias (TESSER et al., 2015). Neste estudo, nas participantes que realizaram parto vaginal (49,6%), 54,0% não escolheram a posição do parto, 91,2% deram à luz na posição litotômica, e em 11,2% foi realizada a manobra de Kristeller. O exame de toque foi realizado em 94,4% das participantes e dentre elas 47,5% desses, foram realizados por diferentes profissionais. Em relação à realização da episiotomia, 23,2% relataram ter sido feito durante o parto, e entre esses 34,4% não foram informadas e/ou não foram anestesiadas.  Essas práticas além de algumas causarem dor, podem potencializar a sensação de vulnerabilidade e submissão da parturiente (PALMA et al, 2017).

A obtenção de informação através do autorrelato depende da memória da participante. Apesar da possibilidade de viés, situações de violência, principalmente no momento do parto, é algo marcante, portanto, torna-se uma situação de fácil evocação na memória. É importante ressaltar que este é um dos primeiros estudos a investigar a prevalência da VO em relação às características sociodemográficas e clínicas, proporcionando uma compreensão mais aprofundada dos fatores que influenciam sua ocorrência e perpetuação, especialmente no Sistema Único de Saúde onde a pesquisa foi realizada.

 

5 Conclusão

Em resumo, este estudo identificou que 60,9% da amostra sofreu algum tipo VO. A principal forma de violência foi a física. Os fatores que apresentaram relação estatisticamente significativa com o desfecho principal foram a idade materna inferior a 23 anos e o tipo de parto vaginal. Portanto, os resultados deste estudo destacam características-chave da VO e proporcionam uma compreensão mais aprofundada de como esse fenômeno ocorre no contexto da assistência ao parto. Sendo assim, é indispensável discutir e rever mudanças nas estratégias de enfrentamento e padrões de cuidado que perpetuam a violência no cotidiano da obstetrícia reduzindo intervenções desnecessárias e melhorando a experiência da mulher na assistência ao parto.

 

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Priscyla de Oliveira Nascimento et al. Fatores associados à violência obstétrica na assistência ao parto vaginal em uma maternidade de alta complexidade em Recife, Pernambuco. Revista brasileira de saúde materno infantil, v. 16, p. 29-37, 2016.

BROWSER, Diana; HILL, Kathleen. Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in Facility-Based Childbirth: Report of a Landscape Analysis-USAID. 2015.

DE MARCO, Molly; THORBURN, Sheryl; ZHAO, Weiyi. Perceived discrimination during prenatal care, labor, and delivery: An examination of data from the Oregon Pregnancy Risk Assessment Monitoring System, 1998–1999, 2000, and 2001. American Journal of Public Health, v. 98, n. 10, p. 1818-1822, 2008.

KRUK, Margaret E. et al. Disrespectful and abusive treatment during facility delivery in Tanzania: a facility and community survey. Health policy and planning, v. 33, n. 1, p. e26-e33, 2018.

LANSKY, Sônia et al. Violência obstétrica: influência da exposição sentidos do nascer na vivência das gestantes. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 24, n. 8, p. 2811-2824, ago. 2019. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.30102017.

MARTÍNEZ-GALIANO, Juan Miguel et al. The magnitude of the problem of obstetric violence and its associated factors: A cross-sectional study. Women and Birth, v. 34, n. 5, p. e526-e536, 2021.

MESENBURG, Marilia Arndt et al. Disrespect and abuse of women during the process of

childbirth in the 2015 Pelotas birth cohort. Reproductive health, v. 15, n. 1, p. 1-8, 2018.

PALMA, Carolina Coelho et al. Violência obstétrica em mulheres brasileiras. Psico, [S.L.], v. 48, n. 3, p. 216, 29 set. 2017. http://dx.doi.org/10.15448/1980 8623.2017.3.25161.

TESSER, Charles Dalcanale et al. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, [S.L.], v. 10, n. 35, p. 1-12, 24 jun. 2015. Sociedade Brasileira de Medicina de Familia e Comunidade (SBMFC). http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013.

VENTURI, Gustavo; GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Fundação Perseu Abramo e SESC [Internet], 2010.

Palavras-chave: assistência ao parto; violência contra mulher; atenção à saúde; saúde materno-infantil; direito das mulheres

Nº de Registro no sistema Prisma: PES 2023-0040

Financiamento: Bolsa de Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital nº 73/GR/UFFS/2023

Publicado
10-09-2024
Seção
Ciências da Saúde - Campus Passo Fundo