IMPRENSA E ESTADO: EFEITOS DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA NA LÍNGUA DO/NO BRASIL

  • Camila Stasiak UFFS CERRO LARGO
  • Caroline Mallmann Schneiders UFFS Cerro Largo
Palavras-chave: Discurso. Jornal. Língua Nacional

Resumo

A língua faz parte da construção do legado de nação e identidade de seus cidadãos, uma vez que é o modo de efetivar a comunicação e abrir espaço à relação que o sujeito estabelece com o âmbito social, de acordo com Fiorin (2009, p. 150), “a língua desenvolve-se historicamente e, uma vez constituída, impõe aos falantes uma maneira de organizar o mundo”. Dessa forma, por seu caráter histórico e singular, pode também ser usada como símbolo de poder e dominação sobre outros povos.

            Lançando olhares ao processo de constituição da Língua Portuguesa no Brasil como língua oficial, observa-se que a Língua Portuguesa do colonizador Português, ao estabelecer seu próprio espaço enunciativo, amplia-se e historiciza-se de maneira diferente na colônia, conforme o encontro com as demais línguas. Como consequência, após a independência do Brasil, passa-se a pensar a língua portuguesa como língua nacional, um momento caracterizado como exclusivo, pois fora preciso desconsiderar as demais línguas que ali circulavam para que se estabelecesse o signo de nacionalismo relacionado à língua nacional, aquela que deveria ser falada, enquanto associada ao estado constituído.

      Tendo em vista essas questões, a presente pesquisa tem como interesse refletir sobre as representações em torno da língua do/no Brasil entre os anos de 1950 e 1970, analisando um jornal local, “O Cerro Largo”, que circulou no município de Cerro Largo, situado nas Missões do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1957 e 1967.

           

2 OBJETIVOS

            O objetivo geral de nossa pesquisa é refletir sobre as representações em torno da língua do/no Brasil entre os anos de 1950 e 1970, discutindo o modo como as políticas linguísticas da época afetaram e determinaram as relações entre as línguas no espaço de enunciação brasileiro.

 

3 METODOLOGIA

            Essa pesquisa está ancorada nos pressupostos teórico e metodológicos da Análise de Discurso de linha pêcheuxtiana (AD), articulando-a com a História das Ideias Linguísticas. Para o desenvolvimento de nossa reflexão, constituímos um arquivo de pesquisa composto por edições de um jornal que circulou entre os anos de 1957 e 1967, a fim de analisarmos a representação de língua a ser ensinada e em circulação em um contexto marcado pela imigração alemã. Desse modo, mobilizamos um jornal local, intitulado: “O Cerro Largo”, que circulou no município de Cerro Largo, situado nas Missões do Rio Grande do Sul.

Nesse sentido, nosso corpus de pesquisa constitui-se da seção do jornal intitulada “Hora pedagógica”, a qual teve publicações entre os anos de 1958 a 1959. Desse modo, parte-se da análise dessa seção, que é caracterizada por se constituir de dicas gramaticais criadas por professores, as quais buscam, através de planos de aula, propor correções a determinadas “irregularidades” que são cometidas pelos alunos em sala de aula. Com a finalidade de compreender os sentidos em torno da língua que a seção fez circular, realizamos recortes discursivos (RDs), os quais compõem o corpus de análise. Os RDs têm como critério de seleção nossa questão de pesquisa, a saber: a representação de língua a ser ensinada e em circulação no objeto de análise.

            O dispositivo teórico e metodológico, com base nos pressupostos da AD e da HIL, terá como enfoque um olhar voltado para a determinação histórica e ideológica do processo discursivo analisado, mobilizando, especialmente, noções, como: língua, discurso, sujeito, ideologia, história, silenciamento, memória discursiva, dentre outras noções que se fizerem pertinentes ao desenvolvimento da pesquisa.

 

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

            Nessa abordagem discursiva, pretende-se analisar a relação do discurso jornalístico com a historicidade, buscando identificar como a ideologia predominante do Estado se materializa em determinado discurso e quais são os efeitos de sentido da língua produzidos a partir disso.

Em nossa pesquisa, consideramos o jornal como um aparelho ideológico do estado (AIE), pois agem em consonância com as ideias idealizadas e impostas pelo Estado (ALTHUSSER, 1985). Entendemos o jornal como aparato histórico e interpelado pela ideologia dominante através da posição que assume em determinada formação discursiva, deixando representado os interesses ideológicos do Estado. Esses interesses, no determinado período, condiziam com a tentativa de fazer circular as regras da língua como maneira de provocar o sentimento de nacionalidade e homogeneidade linguística, visto que se buscava um apagamento das demais línguas que eram faladas nesse território.

Com a finalidade de lançar gestos interpretativos sobre nosso objeto de pesquisa, destacamos dois recortes da seção “Hora pedagógica”, para exemplificarmos como são construídos os efeitos de sentido acerca da língua que estão inscritos no jornal.

RD1: Com o presente numero iniciaremos a publicação da Hora Pedagógica. Trata-se de um trabalho dos esforçados professores da Escola Rural da Linha São Salvador. Sendo um trabalho de real interesse não só para a numerosa classe dos professores primários do nosso Municipio, como também à todos que tem filhos a educar, não temos dúvida em recomendá-lo à todos de modo especial ao nobre Professorado do nosso Município. A Direção. [...] será desenvolvido com desvelo êste extenso e complicado assunto: escrita e pronuncia exata das consoantes: (b,p-d-t e j-ch). (1958, número 53)

 

RD2: Objetivos: Geral: Gramática (ortografia). Especial: Estudo sobre o emprego correto das consoantes: (b-p-d-t-j-ch). Desenvolvimento: sendo o principal objetivo do ensino de gramatica na escola primaria verificar os erros de linguagem cometidos frequentemente em palavras mais usadas na localidade em que se encontra a escola, é necessário que todos os assuntos dessa matéria a serem cultivados sejam os que permitem a correção desses erros. [...] As principais causas dos erros de ortografia são as faltas de atenção, a imperfeição da audição como também a da visão e outra causa consistente nas associações falsas. (1958, número 55).

 

O RD1 refere-se à primeira publicação da seção “Hora pedagógica”, que ocorreu no dia 13 de julho de 1958, no jornal “O Cêrro Largo”, número 53. Nessa primeira seção há a contextualização sobre o que constituirá o material a seguir, assim como também é apresentado o contexto de produção, realizado por professores da escola rural da Linha São Salvador. O assunto em questão é o estudo administrativo e pedagógico desta coluna, também, antecipa-se o assunto que será tratado na próxima publicação.

            Observa-se que esta publicação foi pioneira, e, para tanto, torna indubitável o objetivo de tal coluna: corrigir erros gramaticais. Primeiramente, na apresentação, o professor responsável pela direção da seção, Danilo Santo Polesso, recomenda as publicações aos professores e ao público em geral.

            Nesse contexto, vê-se que são traçados os objetivos, o público-alvo e a estrutura com que virão a se desenvolver as próximas seções. É importante considerar neste caso que, ao falarmos dos anos de 1950 no Brasil, sabe-se que se tratou de um período de início da gramatização e busca pela identidade linguística brasileira propriamente dita, havia uma conjuntura de honra à língua nacional, e, com o início das publicações da “Hora pedagógica”, entende-se consequentemente, que tenha vindo ao encontro a essa proposta para concretizar e disseminar um saber sobre a língua portuguesa, como deveria ser ensinada, e de certa forma, falada.

            Identifica-se que há a circulação de um discurso que visa manter a homogeneidade linguística, fato que impõe barreiras na circulação de outras línguas e suas variedades. Neste caso, concomitante à questão oportuna que o período dos anos 1950 impunha, ao considerar-se o jornal como um aparelho ideológico, funcionando pela ideologia dominante do Estado, observa-se que esse vem a somar nas maneiras de se obter o controle da língua que circulava na sociedade. Guimarães aponta que “uma atividade muito comum na história do controle sobre a língua no Brasil são as colunas de “especialistas” na imprensa” (2004, p.30).

No entanto, pensar em homogeneidade na região das missões torna-se difícil na medida em que se prevalece variedades linguísticas, como as línguas indígenas e as trazidas pelos imigrantes. Ressalta-se, especificamente a região de Cerro Largo, como sendo centro da colonização alemã, onde havia, desse modo, um conflito entre as línguas, o que gerou o apagamento das demais variedades que destoavam da língua nacional.

Dando continuidade, no segundo RD2, assim como previsto na seção anterior do jornal, enfatiza-se o estudo da gramática, marcada especificamente pelo emprego correto das consoantes (b,p,d, t e j,ch). O professor que organizou a matéria foi Evaldo Carlos Kulzer, o qual afirma que a maioria dos erros ortográficos ocorrem pela falta de atenção, ou uma "audição imperfeita". Segue como objetivo central desta seção discutir assuntos que permitam chegar à correção destes erros.

A análise discursiva neste caso, põe em questão a preocupação com o emprego “correto” de consoantes específicas. Considerando que a região de Cerro Largo foi demarcada pelos processos imigratórios alemães, associa-se essas consoantes à dificuldade que esse povo tem de diferenciá-las, o que pode ser entendido também como uma interferência fônica (SCHNEIDER, 2007, p. 52).

Dessa maneira, há a tentativa de silenciamento dos deslizes da língua nacional a partir do imaginário de língua que se veicula pelo jornal, o qual contribui para institucionalizar um saber sobre a língua e regulamentá-la. Concomitante a essa questão, observa-se que neste período havia uma preocupação em fazer circular saberes acerca da língua nacional (MEDEIROS, 2010, p. 86).

No caso da coluna “Hora Pedagógica”, há a preocupação em descrever a língua portuguesa, fazendo-a circular em um espaço que não é o da gramática. Destaca-se, assim, o jornal como um instrumento linguístico (AUROX, 2009), o qual estabelece vínculos ao processo de gramatização, visando um melhor domínio da língua pelo falante, e consequentemente, tornar visível mais um modo de imaginário linguistico. Portanto, ao fazer circular um saber metalinguístico, está pondo em questão a gramatização da língua que deve ser falada e, consequentemente, escrita.

 

5 CONCLUSÃO

Portanto, compreendemos que o jornal “O Cêrro Largo” serviu como um aparato de sustentação da língua imaginária na medida em que contribuiu para o apagamento das demais línguas que circulavam no território a partir da materialização das regras da língua portuguesa. A seção “Hora pedagógica” contribuiu, assim, para fazer circular os saberes da e sobre a língua oficial, a fim de fortificar o sentimento de nacionalidade, e, assim, estabelecer a homogeneidade linguística. Logo, a presença desta coluna não é neutra, mas determinada pelo contexto sócio-histórico e ideológico da época, contribuindo para o silenciamento das demais línguas.

Publicado
30-09-2021